Tive o prazer parcial de assistir a uma palestra com os olhos de um mero espectador, que inapelavelmente muito me preocupou... A palestra se deu em uma faculdade, se fazia obrigatória para alunos de jornalismo (futuros negociadores de opiniões). A proposta temática era tratar das questões étnico-raciais, indubitavelmente uma temática propiciadora de discussões acaloradas, uma temática naturalmente polêmica reveladora de posições conflitantes, uma moeda de duas faces à se revelar, porém...
Porém, as duas faces da moeda não restaram reveladas, apenas uma. A instituição educacional organizadora do evento cometeu o pecado capital de promover uma discussão "aberta" sem que as duas partes interessadas estivessem devidamente representadas, e portanto, não houve discussão, não houve debate, mas apenas um monólogo em sentido unívoco. Proposta crível de crítica, por ter tornado o que deveria ser uma questão ao menos bifacetada em um discurso repleto de argumentos ad hominem circunstanciais repetitivos, batidos. No lugar de um debate "aberto", se viu um processo de "catequização" autocrático, de imposições argumentativas impróprias para uma instituição educacional que deve sempre primar pela pluralidade. Com a notória experiência do palestrante, que é uma das conhecidas cabeças pensantes do movimento negro, dominou-se um auditório púbere, iniciante, abriram-se as cortinas de um show pela metade, ou melhor, abriu-se somente uma das cortinas, explicitou-se tão apenas um dos lados do palco mantendo-se o outro em penumbra, em estado translúcido... O restante da palestra, com a saída do palestrante principal convidado, não merece qualquer nota.
Em 2009 já havia tratado abundantemente do tema neste espaço em um dos posts. Na época, pelos comentários de leitores, lembro-me, do alvoroço que terminei por dar azo na semana de sua publicação, gerando para além de 30 comentários e alguns e-mails à mim dirigidos. Infelizmente, quando minhas palavras restaram cassadas com a retirada deste blog do ar, ressuscitado meses seguintes por um amigo fera da informática, não foi possível a recuperação dos comentários que se perderam pela censura clandestina, mas o jogo se restabeleceu e a bola voltou a rolar...
O sistema de cotas surgiu nos EUA como ação afirmativa. Eram cotas raciais onde a raça, diametralmente oposto ao que ocorre no Brasil, é o grande critério diferenciador das pessoas. Hoje a Suprema Corte proíbe peremptoriamente o sistema de cotas raciais nas universidades, pois agrava a discriminação, contraria a igualdade republicana e agride a autonomia universitária da escolha por critérios meritórios. Hoje o sistema de cotas é usado na Africa do Sul, devido ao ainda presente apartheid, na Índia por causa do sistema de castas e no Canadá devido a questão de Quebec. O sistema de cotas, dada nossa realidade mestiça, não estaria a afetar a própria identidade do povo brasileiro?
Deixo um dado para reflexão: Tanto na Alemanha como no Japão, por exemplo, o número de universitários é relativamente baixo, com percentuais próximos ao do Brasil. Na Bolívia, longe de ser uma exemplo de estabilidade econômica ou política, o número de estudantes universitários é o dobro do brasileiro. Reflita...
Não se discute que o regime escravocrata influenciou fortemente a estratificação social, sendo esta situação acentuada no momento pós-abolicionista com a chegada dos imigrantes europeus e a competição acirrada pelo mercado de trabalho. Somente após os anos 30 começou a proletarização e urbanização dos negros e dos mulatos, havendo uma melhoria na situação nos anos 50 com a industrialização no país. Isso é parte de uma história. Quantas gerações serão "vitimadas" por uma história mal iniciada de exploração?
De acordo com o conceito da Comissão de Direitos Civis Unidos do Estados Unidos a expressão "ação afirmativa" abrange qualquer medida além da simples interrupção da prática discriminatória adotada com a finalidade de corrigir ou compensar a discriminação passada ou presente ou evitar que a discriminação ocorra no futuro.
A questão trazida à baila se atém marcantemente na distinção entre isonomia formal e material. A primeira é a isonomia do art. 5º, caput da CF e a segunda trazida por Rui Barbosa. que permite um tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais na medida de suas desigualdades. Muito interessante notar, que hoje estes movimentos de esquerda, chamados de inclusão, vêm utilizando de pautas sempre manipuladas (em seu melhor sentido) pela direita, quando se proclama o "direito à diferença". Não há como enfatizar a diferença sem afirmar ao mesmo tempo uma distinção de valor. Por isso, trazer como argumentação os paradoxos "diferentes, mas iguais ou igualdade da diferença seria mais um argumento de direita que propriamente de esquerda... A diferença na cor da pele, por exemplo, é uma diferença advinda da natureza e que mereceria um tratamento como igual sim, pois iguais são. A esquerda sempre esteve mais na luta pela igualdade, abstraindo-se particularidades como a cor da pele, mas hoje vem defendendo o reconhecimento destas diferenças em um discurso muito mais segregador que propriamente agregador, é o que na Europa se convencionou denominar de "discriminação positiva", uma imperfeição terminológica, um equívoco, já que toda discriminação é negativa.
A luta pela igualdade de alguma forma, perde a sua logicidade se o propósito é o reconhecimento das diferenças, como subterfugia forma de atenuar desigualdades. Na lógica da diferença, a mulher, que constitucionalmente recebeu o mesmo tratamento do homem, salvo expressas exceções também constitucionais, teria direito à diferença de gênero, se a mulher considerada for negra, terá direito a diferença de gênero e agora de etnia, se portadora de uma certa deficiência terá direito a mais essa diferença, donde se poderia concluir que de tão diferente esta mulher nem humana seria... Na realidade, esta mulher é igual a qualquer outro ser humano e a única diferença relevante a ser considerada seria sua deficiência, ainda assim se comprometedora da execução de atividades que se espera de uma ser humano. Etnia e gênero não são diferenças carecedoras de ações afirmativas em uma sociedade com as realidades hodiernas, mas sim, ações afirmativas nesses sentidos reproduzem diferenças históricas que não se deveriam somatizá-las, discriminações que não se deveria tolerar, é uma forma equivocada de se corrigir um erro cometendo outro.
As ações afirmativas, no entanto, são de indelével positividade quando se busca alcançar os problemas de hoje, e não reconstruir os problemas do passado, catapultando-os para o presente, revivendo-os inadvertidamente como forma paliativa de solução de problemas estruturais diversos. É estratificação social do nosso país a geradora das diferenças e não o gênero ou a cor da pele. Se há mais negros nas comunidades carentes, há também brancos que convivem com as mesmas dificuldades, por que se criar mais uma diferença na existência de situação iguais. Vai aquela batida pergunta: Quem é negro no Brasil para se diferenciar?
Essa pergunta remete-me a um fato que descrevi no post de 2009, quando expus um caso concreto onde dois irmãos gêmeos e univitelinos tentaram o ingresso na universidade pelo sistema de cotas. Olhados com a maior atenção percebia-se que um deles era mais "morenhinho" que o outro, algo praticamente imperceptível, incapaz de diferenciá-los por quem não os conhecessem. Pois é, um dele foi aprovado na universidade graças ao sistema de cotas tirando uma nota notadamente inferior ao seu irmão univitelino, pois este embora se autodeclarasse de origem negra, não foi considerado negro em sua avaliação... São distorções irremediáveis e inconcebíveis, geradoras de injustiças, em um país mestiço, portador de desigualdades sociais, não ético-raciais. Nossa realidade não se mistura com a americana ou com a da África do Sul, onde o racismo e o regime de apartheid foram e anda são uma realidade.
Somos uma sociedade plural de diferentes culturas, cores e condições econômicas, e é exatamente esta pluralidade que caracteriza nossa sociedade, são essas diferenças que podemos chamar de Brasil e tratar cada um dos nossos de forma igual e sem qualquer distinção, de acordo, inclusive, com o que preceitua nossa Constituição.
Se as consideradas minorias ao invés de lutarem por facilitações desiguais lutassem por uma profunda revolução no ensino do país, estas minorias unidas formariam uma maioria com a mais completa e justa legitimidade para suas reivindicações. Não se pregaria a diferença, não se capturaria do passado as questões étnico-raciais já amenizadas no tempo, muito pelo contrário, pleitearia-se o direito a igualdade de condições de luta, de oportunidades, compatíveis com uma Estado Democrático de Direito, que avocou para si a responsabilidade de uma educação digna. Desta forma, não se abstrairia, por conseguinte, a meritocracia, que é uma das bases de sustentação de uma democracia plena. No Brasil, não existe este "apartheid étnico", não podemos é criá-lo com estas políticas de imposição... Nosso "apartheid é econômico-social", que só será vencido através de uma educação qualificada. Políticas afirmativas, como as sustentadas pelos movimentos negros, desviam o foco principal que é a melhoria da educação de nosso país. Pular etapas através de facilitações não produz conquistas, mas inversão de valores, retrocessos odiosos e discriminatórios.
O problema do racismo, ainda existente, embora atenuado pela história, deve ser tratado com um rigor exemplar pelo Estado, punindo-se seus praticantes com leis mais rigorosas e desta forma ajustando-se a sociedade que ainda se mantém desviada. O racismo, é hoje, um crime inafiançável e imprescritível, mas sua pena ainda é insuficiente, o mesmo se diz quanto ao crime de injúria qualificada (que não é inafiançável nem imprescritível), ambos clamam por uma reprimenda estatal exemplar e bem mais gravosa que as aplicadas hodiernamente. Com uma melhoria na educação e uma mudança na quantificação da pena para esses crimes odiosos teríamos um avanço sustentável e isonômico e não um paliativo discriminatório de papel invertido. O foco correto é essencial para uma luta justa e legítima, sob pena de o erro apenas somatizar o problema e gerar outro não existentes...
Enfim, é um tema polêmico e pulsante em que qualquer posição defendida deverá ser respeitada e estará passível de críticas, todas as críticas deverão ser entendidas como legítimas, pois vivemos em uma sociedade constitucional democrática que defende suas pluralidades, que protege suas liberdades, particularmente as de expressão e informação em toda sua amplitude, dentro de uma razoabilidade desejável e necessária. A única cota para negro, que entendo justo apoiar, é mesmo a cota para humor negro, mas da mesma forma, com razoabilidade, parcimônia...
Sem mais.
8 comentários:
Boas posições do autor. Saiu do óbvio que se vê por aí. Entendo que o sentido de todo o exposto deve ser exatamente este. Alguns de repente podem vir a encarar o autor como de discurso não "politicamente correto", mas nada que uma segunda leitura mais atenta não esclareça. Parabéns.
Um tema tão polêmico assim fica até difícil de comentar, mas gostei muito do texto e do blog, qualidade raríssima de se ver na internet.
Defendeu muito bem seu ponto de vista. Muito bem abordada a questão. Me fez repensar.
Sou a favor das cotas e mesmo os bons argumentos trazidos não me fazem mudar. O estilo do texto ficou interessante, pois o blog não avacalhou o movimento, que é legítimo, mas fundamentou suas posições muito bem.
Grande Sarmento,
Concordo contigo. Negros, índios, mestiços e brancos, todos possuem suas dificuldades, a maior delas é a econômica. Diferenciar raça no Brasil? Diferenciar o que no Brasil, um país de mestiços? É querer criar diferenças que não fazem parte da nossa cultura. É inclusive uma espécie de criação do negro com sub-raça, que necessita de muleta para andar, absurdo!
Educação para todos!
Parabéns, mas você sempre arrebentou com seus textos, desde os tempos de filho da PUC, não é novidade a qualidade desse seu blog.
Fique com Deus, abraço e mais sucesso.
Reitero meus amigos acima, colocações impecáveis.
http://www.sinprocampinas.org.br/?q=node/7617 reportagem de 2011
http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u14789.shtml reportagem de 2004
número de negros e pobres cresce,independetemente de ação afirmativa..E já faz tempo
Mas isso os pro-cotas não falam.
Mesmo com a melhor das intenções, que é a inclusão dos excluídos, a cota não premia o esforço. Basta esforçar-se o mínimo(Vamos combinar....obter 30% de acertos no vestibular da UFRGS não é difícil), buscar o escore mínimo que você terá sua vaga garantida ou grandes chances de ser aprovado.O objetivo desta política, de fato, reserva mercado, posição etc. É muito triste o que está se passando no nosso país e espero que um dia isso possa ser remediado.
O bônus depende da nota que o candidato da escola pública tira, o que valoriza o mérito do candidato e o aproxima da aprovação no vestibular.
O aluno que não se sentia motivado para fazer o vestibular,agora ganha um incentivo.Todos "partem" da largada com as mesmas condições e os melhores conquistam sua vaga.
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