O STF caminha. Nem para trás, nem para frente, nem para o
lado; o STF, por esse que poderia representar um julgamento de caráter épico, tratante de uma temática social tão pulsante, que é a questão das cotas étnico-raciais, caminha ao chão, tropeça por suas pernas
próprias trôpegas, após uma semana de desgaste institucional, e sucumbe ao poder da mais pura hipocrisia de falácias apelativas pelo que se convencionou ser o “politicamente correto”...
Segundo o voto do ministro-relator as diferenças raciais devem
ser sim avocadas para se fazerem “justiças históricas”, para em um momento
seguinte, alcançada a “igualdade material” terminar com o que se diferenciaria
por raça, um despautério (minha opinião), que busca o fim das diferenças raciais, uma característica que nos faz plural e nos engrandece. É o início do processo de "embranquecimento" de nossa sociedade, que tanto orgulho nos promove exatamente por ser essa mistura a criadora de personalidades plúrimas marcadas por peculiares caracteres distintivos, que nos fazem pessoas diferentes no genótipo e no fenótipo, mas iguais seres humanos nos direitos, deveres. A pedra de toque, a questão que merece relevo, é exatamente a ausência de igualdade quanto as oportunidades...
Admitida a constitucionalidade das ações afirmativas
étnico-raciais sob o criativo argumento de se tratarem de discriminações positivas ou reversas - criativo para décadas passadas e positiva ou reversa por ilógica
imposição de uma ideia paradoxal – as odiosas diferenças que o tempo estava se
encarregando de apagar voltam imperiosas e impositivas pela legitimação da
maior instância de justiça do país, um perigo que macula a meritocracia e
infirma a raça negra como raça subordinada, que para alcançar a “igualdade” com
a raça “dominadora” necessita da intervenção do Estado que está por lhe declarar
menor! Estou presenciando pelo STF uma “escatologia” jurídica que reverbera a
putrefata discriminação por graus de melanina no país mais miscigenado do mundo,
dividindo uma sociedade plural, criando uma cultura segregadora, que em absoluto não se
identifica com a realidade brasileira e desrespeita a dignidade da pessoa
humana, desrespeita a própria identidade do negro em nosso país.
Neste país não há segregação por cor, neste país não há um apartheid racial, nesse país há um gravíssimo apartheid social de oportunidades, que perpassa
pelas raças negra, branca, cafuza, mameluca e cabocla. Nesse país vive-se uma crise
estrutural de uma educação quase falida, essa sim histórica, essa sim não
enfrentada pelo poder público nem pelo Supremo Tribunal Federal, essa sim segregadora de oportunidades...
Lamentavelmente, não se consolidará pelo STF as ações afirmativas
sociais, estas sim inclusivas e não segregadoras, até porque, para
implementá-las, demandariam não políticas públicas paliativas, discriminatórias
e insubsistentes, mas uma mudança estrutural de prioridades, saindo-se da comodidade
do Estado "faz de conta" para o real enfrentamento das raízes de nossos reais
problemas... A postura do Supremo é patética, cria uma hierarquia por cor e
declara constitucional não o tratamento desigual para os desiguais, mas sim o
tratamento desigual para os iguais. Não custa lembrar, que ações afirmativas
sociais faticamente albergariam muito mais a população negra e parda (maioria
nesta categoria em nossa estratificada sociedade), mas de forma satisfatória,
sem discriminações entre iguais, abarcando a população branca sem oportunidades, na conformidade do espírito de nossa Constituição. Iniciar-se-ia um processo de restauração de
nossas reais feridas históricas, que é o desinteresse de informar a todos com
qualidade para meritoriamente se alcançar a plena cidadania e o respeito por suas conquistas. Mas a quem isso NÃO interessaria? Exatamente a quem detém o poder, seja homem ou mulher;
branco, negro, pardo ou albino... O país já possui problemas que parecem
insolucionáveis, o STF está importando e legitimando um que não nos pertencia
com uma decisão populista muito peculiar ao sistema que se instalou no país na última década,
postergando o verdadeiro fim de nossas ignorâncias e a verdadeira razão de nossa crise de igualdade de oportunidades...
Sobre o sistema de cotas este é o 3º post que faço. A partir desse momento insiro a parte pertinente do último, que condensa toda minha opinião sobre a temática em pauta. O julgamento do Supremo apenas iniciou-se, mas como "macaco velho" e conhecedor daquele sistema de poder não me restam dúvidas quanto a seu lamentavelmente emporcalhado final, antecipando-me. Passo a reproduzir uma ótica que julgo mais crível com as nossas realidades sociais:
O sistema de cotas surgiu nos EUA como ação afirmativa. Eram cotas raciais onde a raça, diametralmente oposto ao que ocorre no Brasil, é o grande critério diferenciador das pessoas. Hoje a Suprema Corte proíbe peremptoriamente o sistema de cotas raciais nas universidades, pois agrava a discriminação, contraria a igualdade republicana e agride a autonomia universitária da escolha por critérios meritórios. Hoje o sistema de cotas é usado na Africa do Sul, devido ao ainda presente apartheid, na Índia por causa do sistema de castas (o que agravou estatisticamente em muito a questão do ódio por raça) e no Canadá devido a questão de Quebec. O sistema de cotas, dada nossa realidade mestiça, não estaria a afetar a própria identidade do povo brasileiro?
Deixo um dado para reflexão: Tanto na Alemanha como no Japão, por exemplo, o número de universitários é relativamente baixo, com percentuais próximos ao do Brasil. Na Bolívia, longe de ser um exemplo de estabilidade econômica ou política, o número de estudantes universitários é o dobro do brasileiro. Reflita...
Não se discute que o regime escravocrata influenciou fortemente a estratificação social, sendo esta situação acentuada no momento pós-abolicionista com a chegada dos imigrantes europeus e a competição acirrada pelo mercado de trabalho. Somente após os anos 30 começou a proletarização e urbanização dos negros e dos mulatos, havendo uma melhoria na situação nos anos 50 com a industrialização no país. Isso é parte de uma história. Quantas gerações serão "vitimadas" por uma história mal iniciada de exploração?
De acordo com o conceito da Comissão de Direitos Civis dos Estados Unidos a expressão "ação afirmativa" abrange qualquer medida além da simples interrupção da prática discriminatória adotada com a finalidade de corrigir ou compensar a discriminação passada ou presente ou evitar que a discriminação ocorra no futuro.
A questão trazida à baila se atém marcantemente na distinção entre isonomia formal e material. A primeira é a isonomia do art. 5º, caput da CF e a segunda trazida por Rui Barbosa, que permite um tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais na medida de suas desigualdades. Muito interessante notar, que hoje estes movimentos de esquerda, chamados de inclusão, vêm utilizando de pautas sempre manipuladas (em seu melhor sentido) pela direita, quando se proclama o "direito à diferença". Não há como enfatizar a diferença sem afirmar ao mesmo tempo uma distinção de valor. Por isso, trazer como argumentação os paradoxos "diferentes, mas iguais ou igualdade da diferença" seria mais um argumento de direita que propriamente de esquerda... A diferença na cor da pele, por exemplo, é uma diferença advinda da natureza e que mereceria um tratamento como igual sim, pois iguais são. A esquerda sempre esteve mais na luta pela igualdade, abstraindo-se particularidades como a cor da pele, mas hoje vem defendendo o reconhecimento destas diferenças em um discurso muito mais segregador que propriamente agregador, é o que na Europa se convencionou denominar de "discriminação positiva", uma imperfeição terminológica, um equívoco, já que toda discriminação inelutavelmente é negativa. Diferenças que devem ser cultuadas e valorizadas são as culturais, de origens, não as advindas da cor da pele...
A luta pela igualdade, de alguma forma, perde a sua logicidade se o propósito é o reconhecimento das diferenças, como subterfugia forma de atenuar desigualdades. Na lógica da diferença, a mulher, que constitucionalmente recebeu o mesmo tratamento do homem, salvo expressas exceções também constitucionais, teria direito a diferença de gênero, se a mulher considerada for negra, terá direito a diferença de gênero e agora de etnia, se portadora de uma certa deficiência terá direito a mais essa diferença, donde se poderia concluir que de tão diferente esta mulher negra e deficiente nem humana seria... Na realidade, essa mulher é igual a qualquer outro ser humano, e a única diferença relevante a ser considerada seria sua deficiência, ainda assim, se comprometedora da execução de atividades que se espera de um ser humano pleno. Etnia e gênero não são diferenças carecedoras de ações afirmativas, salvo as exceções constitucionais, em uma sociedade com as realidades hodiernas, mas sim, ações afirmativas nesses sentidos reproduzem diferenças históricas que não se deveriam somatizá-las, discriminações que não se deveria tolerar, é uma forma equivocada de se corrigir um erro cometendo outro. Incentivar é bem diferente de discriminar e deveria ser aquela a ferramenta para que o poder público alcançasse a igualdade constitucional...
As ações afirmativas, reafirmo, são de indelével positividade quando se busca alcançar os problemas de hoje, e não reconstruir os problemas do passado, catapultando-os para o presente, revivendo-os inadvertidamente como forma paliativa de solução de problemas estruturais diversos. É a estratificação social do nosso país a geradora das diferenças e não o gênero ou a cor da pele. Se há mais negros nas comunidades carentes, há também brancos que convivem com as mesmas dificuldades. Por que se criar mais uma diferença na existência de situações iguais? Vai aquela batida pergunta: Quem é negro no Brasil para se diferenciar, se somos uma esmagadora maioria de pardos?
Essa pergunta remete-me a um fato que descrevi no post de 2009, quando expus um caso concreto onde dois irmãos gêmeos e univitelinos tentaram o ingresso na universidade pelo sistema de cotas. Olhados com a maior atenção percebia-se que um deles era mais "moreninho" que o outro, algo praticamente imperceptível, incapaz de diferenciá-los por quem não os conhecessem. Pois é, um deles foi aprovado na universidade graças ao sistema de cotas tirando uma nota notadamente inferior ao seu irmão univitelino, pois este embora se autodeclarasse de origem negra, não foi considerado negro em sua avaliação... São distorções irremediáveis e inconcebíveis, geradoras de injustiças, em um país mestiço, portador de desigualdades sociais, não étnico-raciais. Nossa realidade não se mistura com a americana ou com a da África do Sul, onde o racismo e o regime de apartheid foram e ainda são uma realidade.
Somos uma sociedade plural de diferentes culturas e cores, e é exatamente essa pluralidade que caracteriza nossa sociedade, são essas diferenças que podemos chamar de Brasil e tratar cada um dos nossos de forma igual sem qualquer distinção, de acordo, inclusive, com o que preceitua nossa Constituição, igualando-nos sim, de forma a não discriminar as oportunidades para se formar uma sociedade de cidadãos plenos. Nossas desigualdades geradoras de conflito e denotadoras da ausência de uma política pública minimamente satisfatória está no campo das oportunidades, e o único remédio desejável de combate é a educação qualificada para todos.
Se as consideradas minorias ao invés de lutarem por facilitações desiguais lutassem por uma profunda revolução no ensino do país, estas minorias unidas formariam uma maioria com a mais completa e justa legitimidade para suas reivindicações. Não se pregaria a diferença, não se capturaria do passado as questões étnico-raciais já amenizadas no tempo, muito pelo contrário, pleitearia-se o direito a igualdade das condições de luta, de oportunidades, compatíveis com um Estado Democrático de Direito, que avocou para si a responsabilidade de uma educação digna. Desta forma, não se abstrairia, por conseguinte, a meritocracia, que é uma das bases de sustentação de uma sociedade democrática plena. No Brasil, não existe este "apartheid étnico", não podemos é criá-lo com estas políticas de imposição... Nosso "apartheid é econômico-social", que só será vencido através de uma educação qualificada. Políticas afirmativas, como as sustentadas pelos movimentos negros, desviam o foco principal que é a melhoria da educação de nosso país. Pular etapas através de facilitações não produz conquistas, mas inversão de valores, retrocessos odiosos e discriminatórios, contrários a meritocracia e a própria dignidade humana. Não podemos abraçar a ideia pautada na mais pura hipocrisia de que os de cor negra precisam enxergar outros de sua cor em posições de destaque para o aumento de suas auto-estimas... Se assim, passemos em alguma das muitas comunidades carentes deste país e escolhamos um com pele negra, bem negra (excluindo a possibilidade dos de menor quantidade de melanina), e o elejamos nosso próximo presidente. Teremos assim resolvido os problemas sociais de nosso país?
O problema do racismo, ainda existente, embora atenuado pela história, deve ser tratado com um rigor exemplar pelo Estado, punindo-se seus praticantes com leis mais rigorosas, e desta forma, ajustando-se parcela da sociedade que ainda se mantém desviada. O racismo, é hoje, um crime inafiançável e imprescritível, mas sua pena ainda é insuficiente, o mesmo se diz quanto ao crime de injúria qualificada (que não é inafiançável nem imprescritível), ambos clamam por uma reprimenda estatal exemplar e bem mais gravosa que as aplicadas hodiernamente. Com uma melhoria na educação e uma mudança na quantificação da pena para esses crimes odiosos teríamos um avanço sustentável e isonômico e não um paliativo discriminatório de papel invertido. O foco correto é essencial para uma luta justa e legítima, sob pena de o erro apenas somatizar o problema e gerar outros não existentes...
Enfim, é um tema polêmico e pulsante, como disse, e que qualquer posição defendida deverá ser respeitada e estará passível de críticas, onde todas as críticas deverão ser entendidas como legítimas, pois vivemos em uma sociedade constitucional democrática, que deve defender nossas pluralidades (principalmente de opinião), que deve ver respeitadas nossas liberdades (particularmente as de expressão e informação), em toda sua amplitude. Uma pena o STF não ter enfrentado essas chamadas "políticas compensatórias" como deveria. Afundou-se em exemplos apelativos como fundamentos ensejadores dessas fabricadas discriminações. A rejeição de grande parcela da sociedade não diz respeito às políticas públicas de ações afirmativas, mas sim da ação afirmativa vir a beneficiar discriminando, por questão de cor e não de condições sócio-econômicas, como deveria ser o foco. Essa distinção os ministros certamente não abordarão, pois se abordadas, suas teses se distanciarão ainda mais da realidade desse país e do espírito de nossa lei maior. Por essa decisão estar-se-á legitimando o pleito de cotas também para obesos, que indubitavelmente sofrem discriminações em sua vidas, dificuldades de se inserirem no mercado de trabalho e mesmo de completar seus estudos pela constância dos bullyngs nos ambientes escolares... E o que diríamos das comunidades GLBT? Essa decisão do STF é pífia, simplista, pobre de sustentação e odiosa, por criar diferenças inexistentes nos dias de hoje e ignorar as existentes que clamam por solução...
Particularmente a única cota para negro, que entendo justo apoiar, é mesmo a cota para humor negro, mas claro, com a razoabilidade e parcimônia necessárias...
Sem mais.
5 comentários:
Magnífica exposição. Visito seu blog sempre esperando muito e sempre sou surpreendida com mais. Uma aula de conteúdo de de como se fazer uma crítica com extrema qualidade.
Boa tarde,
Acabei de ver um texto que poderia ser o voto de um dos ministros, pena não ter sido...
É um texto duro e sarcástico em alguns momentos, mas entendo como capaz de fazer refletir cada um que tiver a oportunidade de lê-lo. Meus parabéns!
Muito grande e muito bom! Melhor que o voto dos ministro, uma pena... Obrigado pela oportunidade de ler algo tão bem feito, meticuloso. Prazer!!
Adoro ler seus artigos, de uma forma bem lucida é dito o que muitos articulistas de jornais do meio corporativo não conseguem dizer.
Continue a escrever essas palavras de liberdade e principalmente de esclarecimento acerca do que acontece por trás das ideias dos que se acham o dono do poder.
A consciencia e educação podem libertar a sociedade de qualquer forma de partidarismo de siglas.
Dizem que vivemos em uma plena democracia, tive que ouvir essa de um tal de Ivan Seixas. Mas que raios de democrácia é esssa que não está aberta ao debate.
Pelo menos aqui no seu blog, sinto estar participando de um espaço democrático.
Abraço!
Thiago Moraes
Como é bom ler qualidade. Muito obrigada!
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