Segue carta enviada por Cesare Battisti ao CONARE pouco antes de seu julgamento. Carta de Cesare Battisti ao CONARE
Senhor Presidente do Conare Demais conselheiros e autoridades brasileiras,
São muitos os anos de perseguição política que sofro. Confesso que estou cansado. Após minha fuga da Itália, a minha militância deu-se como escritos, usando o espaço que me deram as editoras francesas e italianas para criticas a época política italiana dos anos de chumbo. Fui membro do PAC, mas nunca pratiquei atos de violência. Me abriguei em solo francês, pois a doutrina Mitterand protegia os militantes que renunciassem à prática de atos de violência. A verdade é que eu já havia publicamente renunciado à luta armada quando da morte de Aldo Moro. Tão logo percebi o caminho pelo qual a esquerda radical italiana poderia estar indo, fui radicalmente contra e cheguei mesmo a dizer a meus companheiros minha discordância. Fugi para a França, e da França para o México, e do México para a França, e da França para o Brasil. A pé, de ônibus, de avião, de carro, enfim, da forma que fosse possível. Fugi cruzando territórios e fronteiras, que nem sempre eram a minha destinação original. Fugi muitas vezes pensando que nunca mais veria minhas duas filhas, meus amigos, minhas referências de vida. Hoje estou cansado. Se volto para a Itália sei que vou morrer. Embora nunca tenha matado ninguém, me acusaram de ter matado policiais com base em um depoimento de um "arrependido" por delação premiada, que jogou a culpa por muitos atos praticados por ele próprio em mim. Sei que será difícil convencer as pessoas da verdade, pois mentiras contra mim foram repetidas mais de mil vezes. Nunca pratiquei atos de violência contra quem quer que seja, e não há testemunha presencial que me acuse de tal prática. Sei que tenho condições de viver o fim de meus dias com dignidades nesta terra maravilhosa, como outros militantes políticos de esquerda da época o estão fazendo. Sei que posso continuar minha carreira de escritor e tradutor sem interferir em assuntos internos. Vim para o Brasil pois sabia do calor e do acolhimento que aqui receberia. Sabia também que o Brasil acolhe perseguidos políticos. Hoje tenho certeza que reúno condições de aqui trabalhar, de trazer minha família para perto, de estar ao lado de meus amigos que mesmo vivendo do outro lado do Atlântico nunca me deixaram só. Recebi com muita alegria a mudança de orientação do governo francês, que decidiu não mais extraditar Marina Petrella. Ela não merecia a morte, e Mitterand havia dado a todas nós a palavra de que não seriamos extraditados. Sarkozy procura o caminho dos grandes estadistas quando dá a mesma palavra para as FARCs e quando protege Marina da morte que seria certa. A verdade é que tudo isso me dá no mínimo o direito de sonhar que serei aceito como refugiado político nesta terra maravilhosa chamada Brasil e que um dia poderei ver a verdade restabelecida também na França e na Itália.
Atenciosamente,
Cesare Battisti .
Em carta recentemente enviada do cárcere, Cesare faz o seguinte apelo a apoiadores e apoiadoras:
"Eu agora preciso de vocês mais do que nunca, nem como de todos aqueles que lhe pareçam sensíveis a minha causa. Preciso de apoio de todas/os os amigos/as e companheiros/as a quem cada um de vocês tem acesso. Pois a impressão (e não é só uma impressão) que tenho é que caí mais uma vez em um jogo político sujo e cujas regras e verdadeiros objetivos desconheço. (...) Como bem sabem, muitas batalhas resultam em derrota ou vitória justamente em face da decisão da hora ou não de agir. Bem verdade lhe digo: é hora de agir!"
Carta enviada por Cesare Battisti desde sua cela da polícia federal, em Brasília. Data-se de Junho de 2008, toda solidariedade faz-se necessária...
Caros XXX e companheiros/as, é minha intenção inicial agradecer a vocês a ajuda dispensada e o interesse a mim dirigido durante todo esse tempo de segregação que já perduram 15 meses. Tentarei escrever-lhe de forma direta e aproveitando o meu falho português, despretensiosa também. Enfim, sem filtros cerebrais, É Assim que preciso me sentir quando escrevo a leitores "imaginários" deixar as palavras sair do peito (deformação profissional): faço-me então pano de chão para levantar-me pouco a pouco à altura do coração. Justamente por tê-los/as como companheir@s é que ouso dar-me o direito de escrever-lhe assim. O que pretendo fazer agora, seguindo o fio da intenção supracitada, é um balancete desse 15 meses de reclusão, bem como tornar-los conhecedores de minha situação jurídica, caso já não sejam, e de forma concomitante, solicitar mais uma vez vossa ajuda, caso seja possível, no que concerne ao plano que, a parte, será melhor detalhado e que, de todo modo, submeto a vossa experiência. Enfim, como sabem, dia 18/01/08 realizou-se meu depoimento em frente de um juiz federal. Aparentemente, tudo sucedeu-se da melhor maneira possível, até com o promotor colocando-se de meu lado. Eu, a defesa e todos os mais próximos não tivemos dúvidas sobre uma inevitável influência positiva sobre a Procuradoria Geral da República, que deveria em seguida pronunciar-se a respeito. Qual não foi nossa surpresa quando um mês depois o indefectível Procurador se pronunciou a favor de minha extradição, com um parecer até certo ponto desrespeitoso à ótima defesa apresentada. Ele, o fiel da balança, sequer se deu ao trabalho de fundamentar e substanciar adequadamente o seu escabroso parecer. Foi impressão da defesa e de outr@s que tal parecer caiu como uma bomba no âmbito do STF. Previsível foi também a festa mediática à qual se entregaram os urubus europeus e alguns brasileiros. Outrossim, lhe informo que os meus advogados reenviaram o processo a PGR para uma segunda avaliação e posterior retorno ao STF. Porém daqui em frente vamos precisar de um enorme trabalho jurídico e de sensibilização do mundo político e cultural brasileiro. Eis a razão desta: eu agora preciso de vocês mais do que nunca, nem como de todos aqueles que lhe pareçam sensíveis a minha causa. Preciso de apoio de todas/os os amigos/as e companheiros/as a quem cada um de vocês tem acesso. Pois a impressão (e não é só uma impressão) que tenho é que caí mais uma vez em um jogo político sujo e cujas regras e verdadeiros objetivos desconheço. Como bem sabem, muitas batalhas resultam em derrota ou vitória justamente em face da decisão da hora ou não de agir. Bem verdade lhe digo: é hora de agir! Começaremos corrigindo o erro que as companheiras e companheiros franceses perpetuaram com tanta obstinação, mesmo que tenha ocorrido motivado pelas melhores intenções: separar a todo custo o homem político, o escritor militante do processo estritamente jurídico. O mesmo que aconteceu na França em 2004 (ao final me trocaram por um contrato de trem bala entre as cidades de Lion e Turin) parece-me repetir-se aqui agora: enquanto a gente ficava ocupada com empecilhos jurídicos para evitar a extradição - já negada 14 anos antes! - os adversários já tinham ocupado o terreno político para assim pressionar o aparelho judiciário. Ora, sendo sabedor da boa defesa apresentada pelo profissionalismo do corpo jurídico que em advoga em minha defesa, permito-me nutrir reais chances de vitória jurídica com a continuidade da tramitação do processo. Porém, não posso me dar ao luxo de desconsiderar a forte influência italo-francesa aqui no Brasil. Bem como o seu grande poder de persuasão com todo o suficiente tempo que tiveram (2,6 anos de monitoramento em território brasileiro!) para arquitetar o forte fraudulento pedido de extradição. Daí, se faz necessário e imprescindível a minha intervenção nesse processo articulando todas as possíveis relações para que confluam em uma inteligente sensibilização do povo cultural e político e para que estes intercedam de alguma forma perante as autoridades, intermediado por pessoas como vocês ou a todos aqueles que lhe pareçam susceptíveis ao meu apoio. Quero, car@s amig@s, dar voz à minha consciência, porque este é meu papel desde sempre, esta é a minha índole, este é o processo político não só meu mas também dos anos 70 na Itália e esta é a minha única oportunidade de tirar meu nome da lixeira onde os obscurantistas de sempre querem colocá-lo. E, além de tudo, ninguém afora de mim é melhor do que eu pra sabe da gravidade da mentira histórica que está que está à origem de meus problemas atuais. Existem centenas de refugiados/as italianos/as dos anos 70 no mundo, inclusive no Brasil, porque então eu? Porque se não é para me calar a boca, tirar das bibliotecas meus livros que denunciam a horrorosa verdade daqueles anos? Não obstante a esses 15 meses de constrangimentos e d'espoliação - veja-se recluso em uma custódia de "delegacia", privado dos benefícios mínimos que mantém o equilíbrio psico-físico e que são de direito de qualquer preso - fico ainda em boas condições para avaliar a situação tal e qual se apresenta. Batalhas serão travadas e quero tomas parte ativa nesta luta política. Com o intuito que a verdade será enfim revelada sobre meu percurso político entre dois séculos. Porque a verdade, car@s companheir@s, é como aquela gota de chuva correndo ao longo de um fio. Só temos uma certeza: ela, uma hora, cairá. Eu estou precisando de ajuda. Levando em conta vossa particular colocação política e social, solicito que intercedam e sensibilizem a todos/as que achar relevantes no âmbito político-cultural e no movimento social me geral. Acho que não precisa, - ou sim? - lembrar ao Lula, agora guia do povo brasileiro, que nós lutamos do mesmo lado e na mesma época e que só por fatalidade, talvez também por competência, acabamos por tomar rumos tão diferentes. Poderia o presidente de hoje me entregar à morte certa que me espera nas celas da Itália (não se pode esquecer que eu fui escabrosa e mentirosamente condenado por assassinato de policiais, chefes de penitenciaria e milicianos; nesse sentido a Itália não é diferente do Brasil; me deixariam vivo?). Pois, este, onde ainda uma centena de pres@s políticos ficam sepultados/as vivos/as há mais de 35 anos e que agora estão pedindo a restauração da pena de morte, por desespero? Será que serei injustiçado pelo mesmo PT que eu como milhares de companheir@s do mundo aplaudimos quando da sua chegada ao poder através da eleição do Lula? Não me permito sequer imaginar que o povo brasileiro aceitará essa infame maquinação dos governos de direita Franco-Italianos. Este último integrado de novo pelos fascistas de mussoliniana memória de "Allianza Nazionale" e que querem retirar o sujeito político que sou do contexto histórico que motivou este VINGATIVO pedido de extradição. É a esse povo que agora peço: não deixem que me furtem a minha identidade política e cultual adquirida à custo de tanto sacrifício, não só de minha parte mas também de todos aqueles que ao longo de minha vida acreditaram em mim. Eu sempre assumi, sem falhas, as minhas responsabilidades políticas. Vide ontem - anos 70 - afastando-me fiel até as últimas conseqüências a meus ideais de justiça social, sendo as mesmas que me trouxeram ao Brasil, com a nutrição de esperança de juntar-me um dia a minha família e aqui morar. Assumindo enfim, pela primeira vez com todas as garantias constitucionais, minhas responsabilidades processuais frente à justiça brasileira. Eu sei, amig@s querid@s, que a coerência se empurrada ao extremo não é forçosamente revolucionária. Mas será que também ser conseqüente virou um atributo anti-social?
Um abraço,
Cesare Battisti .
Em nota divulgada na noite da terça feira 13 de janeiro, o Ministério da Justiça anunciou que o ministro da Justiça, Tarso Genro, decidiu pela concessão de refúgio humanitário ao escritor italiano Cesare Battisti, de 52 anos, que se encontrava preso na Penitenciária do Distrito Federal, desde 18 de março de 2007.
De acordo com a nota, o ministro Tarso Genro “decidiu pela concessão de refúgio (...) por entender que existe o elemento de 'fundado temor de perseguição'. O voto foi proferido (...) depois de analisados os argumentos do recurso impetrado contra a negativa do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), em novembro passado”.
Na Itália, Battisti foi condenado à pena de prisão perpétua por duas sentenças. No pedido de extradição, a Itália alega quatro homicídios que teria cometido entre 1977 e 1979.
No voto – diz a nota – o ministro apóia-se no Estatuto dos Refugiados (1951) e a Lei 9.474 (1997), “que prevê como motivo de refúgio 'fundado temor de perseguição por motivos de raça (...) ou opinião política'. Segundo ele, a Itália reconhece a conotação política, uma vez que na sentença de Battisti consta o crime de associação subversiva, 'com a finalidade de subverter o sistema econômico e social do país'".
Os homicídios imputados a Battisti aconteceram num período em que o Estado italiano havia criado normas jurídicas de exceção.
Leia abaixo a íntegra do voto do Ministro Tarso Genro:
Referência: Processo nº. 08000.011373/2008-83
Procedência: Conare
Assunto: Recurso. Negativa. Condição de Refugiado. Carência de Pressupostos.
Interessado: CESARE BATTISTI
I. Relatório
1. Cuida-se de recurso interposto em favor do nacional italiano CESARE BATTISTI, com fulcro no art. 29, da Lei nº. 9.474/97, em face da Decisão proferida pelo Comitê Nacional para os Refugiados – CONARE, que lhe negou o reconhecimento da condição de refugiado ante a carência das hipóteses previstas no art. 1º do mesmo permissivo legal.
2. Alega o Recorrente, em apertada síntese, que integrou Organização político-partidária na Itália durante os chamados "anos de chumbo", e que é perseguido pelas autoridades daquele país em razão das opiniões políticas disseminadas à época, as quais fundamentaram, inclusive, pedido de extradição em seu desfavor para que seja submetido ao cumprimento de sentenças proferidas em processos que julga eivados de ilegalidade e que resultaram em condenação a prisão perpétua por crimes que assegura não ter cometido.
3. Junta documentos.
4. É o relatório, passo à decisão.
II. Decisão
5. O pedido de reconsideração é tempestivo.
6. Compulsando os documentos constantes dos autos, restou verificado constar processo de extradição passiva executória em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, por meio do qual o Governo da República da Itália colima a entrega do Recorrente para cumprimento de pena perpétua decorrente de duas sentenças criminais naquele país, o qual se encontra suspenso na forma da Lei até final decisão deste processo.
7. A lei nº. 9.474/97, que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, dispõe em seu art. 1º acerca das condições em que poderá ser reconhecida a condição de refugiado a um cidadão estrangeiro, verbis:
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
8. Por sua vez, o Estado requerente não ofereceu oposição à alegada conotação política aventada quanto aos fatos pelos quais seu nacional é reclamado. Ao contrário, consignou expressamente em sentença que, nos diversos crimes listados, agiu o Recorrente "com a finalidade de subverter a ordem do Estado", afirmando ainda que os panfletos e as ações criminosas de sua lavra objetivavam "subverter as instituições e a fazer com que o proletariado tomasse o poder".
9. Vê-se, portanto, que no caso ora em análise impõe-se uma inquietante e crucial questão central: o Recorrente possui fundado temor de perseguição por suas opiniões políticas? Teria o Recorrente, ademais, cometido crimes políticos, ou sofrido perseguição política que resultasse na constatação de ilícitos criminais por ele não perpetrados?
10. Há que se definir os elementos subjetivo e objetivo do temor a que alude o art. 1º, I, da Lei nº. 9.474/97, o primeiro relativo ao foro íntimo do Recorrente e o segundo relacionado com as razões concretas que justifiquem aquele temor.
11. Para que sejam verificados esses elementos, é necessário, em primeiro lugar, tomar como referência o contexto de turbulência política à época dos supostos delitos em que o Recorrente teria incorrido.
12. A repressão legítima, pelo Estado italiano, à militância de esquerda, que pretendeu, pelas armas, derrubar o regime durante os chamados "anos de chumbo" das décadas de 1970 e 1980, traduz-se por fatos públicos e notórios, sobre os quais não existe qualquer contencioso. É de acentuada convulsão social o momento histórico no qual o recorrente foi condenado pela Justiça italiana, como autor e co-autor de homicídios ocorridos entre junho de 1978 e abril de 1979.
13. Durante esse período, a sociedade italiana e o Estado de Direito na Itália foram assediados por um conjunto de movimentos políticos, ações armadas e mobilizações sociais que pretendiam, alguns deles, a instalação de um novo regime político-social. Na esteira do desmantelamento das políticas da era social-democrata então em declínio, formaram-se organizações revolucionárias de ação direta que operavam em zonas "cinzentas", na estreita faixa entre a ação política insurrecional de caráter armado e a ação marginal do "banditismo social".
14. Como é possível e necessário nos Estados Democráticos de Direito, o Estado italiano reagiu. E o fez não só aplicando normas jurídicas em vigor à época, mas também criando "exceções", por meio de leis de defesa do Estado, que reduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subversão e/ou ações violentas, inclusive com a instituição da delação premiada, da qual se serviu o principal denunciante do Recorrente.
15. Nos momentos de extrema tensão social e política é comum e previsível que passem a funcionar, mesmo no Estado de Direito, aparatos ilegais e/ou paralelos do Estado, comandados por pessoas que se erigem à condição de justiceiros "de fato", como se representassem o bem público, o que por vezes configura uma forte crise de legalidade: "a lei perde (...) o primado político no sistema"2. Nesses casos, a judicialização da política, paradoxalmente, atinge
1 OUTHWAITE, William; et.al. Dicionário Pensamento Social do Século XX : Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996. p. 59 relata: "mais bem-sucedido de desenvolvimento econômico capitalista, nos anos 50 e 60, esteve associado a uma grande expansão das atividades econômicas do estado, envolvendo em muitos países a ampliação da propriedade pública e do planejamento econômico, visando mitigar as conseqüências danosas – tanto econômicas quanto sociais – de uma economia de livre empresa e livre mercado inadequadamente regulamentada."
2 "Mas a crise da lei depende também de outras razões, mais estreitamente jurídicas. A primeira delas, o nascimento das constituições rígidas, das constituições como leis não modificáveis. Uma lei superior, portanto, que as leis comuns devem juridicamente respeitar. Decorre daí um controle de constitucionalidade sobre o conteúdo das demais leis, o que explicita ainda mais a garantia da superioridade da constituição. A lei perde, assim, o primado político no sistema, a despeito de que se mantém ainda como o ato normativo politicamente central para o desenvolvimento do ordenamento. E as constituições confiam às leis outros atos garantias democráticas sem que o regime democrático seja colocado em dúvida. Norberto Bobbio reportou-se a esta situação em texto clássico: “normativos igualmente primários: atos do governo, atos dos entes autônomos, atos de competência reservada, dentre outros”. BILANCIA, Francesco. In LEAL, Rogério Gesta. Administração Pública Compartida no Brasil e na Itália: Reflexões Preliminares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008, p. 75. HABERMAS, Jürgen. Era das Transições. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, esp. p.153 ss., quando o autor discute a questão do Estado Democrático de Direito.
3 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 104.
4 Cf. DWORKIN, Ronald, Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 205: "The institution of rights is therefore crucial, because it represents the majority’s promise to the minorities that their dignity and equality will be respected. When the divisions among the groups are most violent, then this gesture, if law is to work, must be most sincere".
"Chamo de ‘criptogoverno’ o conjunto das ações realizadas por forças políticas eversivas que agem na sombra em articulação com os serviços secretos, ou com parte deles, ou pelo menos por eles não obstaculizadas. O primeiro episódio deste gênero na recente história da Itália foi inegavelmente o massacre da Praça Fontana. Não obstante o longo processo judiciário em várias fases e em várias direções, o mistério não foi revelado, a verdade não foi descoberta, as trevas não foram dissipadas. Apesar disto, não nos encontramos na esfera do inconhecível; embora não saibamos quem foi, sabemos com certeza que alguém foi. Não faço conjecturas, não avanço nenhuma hipótese."3
16. Situações de emergência como a italiana – no caso, a luta contra a fúria assassina que redundou no assassinato de Aldo Moro – motivam uma preocupação candente com o funcionamento dos aparatos repressivos. É fundamental, porém, que jamais seja aceita a derrogação dos fundamentos jurídicos que socorrem os direitos humanos.4 No caso italiano, as possibilidades para que os abusos ocorressem estavam dadas pelo próprio ordenamento jurídico forjado nos "anos de chumbo":
"A magistratura italiana foi então dotada de todo um arsenal de poderes de polícia e de leis de exceção: a invenção de novos delitos como a ‘associação criminal terrorista e de subversão da ordem constitucional’ (artigo 270 bis do Código Penal) veio se somar e redobrar as numerosas infrações já existentes – ‘associação subversiva’, ‘quadrilha armada’, ‘insurreição armada contra os poderes do Estado’ etc. Ora, esta dilatação da qualificação penal dos fatos garantia toda uma estratégia de ‘arrastão judiciário’ a permitir o encarceramento com base em simples hipóteses, e isto
5 MUCCHIELLI, Jacques. "Article 41-bis et prisons italiennes". In ARTIÈRES, Philippi, LASCOUMES, Pierre (org.), Gouverner, enfermer – la prison, un modèle indépassable? Paris: Presses de Sciences Po, 2004, p. 246. Tradução livre de "La magistrature italienne s’est ainsi dotée de tout un arsenal de pouvoirs de police et de lois d’excepcion: invention de nouveaux délits telle l’‘association criminelle terroriste et de subversion da l’ordre constitutionnel’ (article 270 bis du Códe pénal) venant s’ajouter et redoubler les nombreuses infractions déjà existantes – ‘association subversive’, ‘bande armée’, ‘insurrection armée contre les pouvoirs de l’État’, etc. Cette dilatation de la qualification pénale des faits assure alors tout une stratégie de ‘rafle judiciaire’ permettant d’incarcérer sur la base de simples hypothèses, et ce pour une detention préventive, permise par l’article 10 du décret-loi du 15 septembre 1979, d’une durée maximale de dix ans et huit mois." Na seqüência, o autor apresenta exemplo extremamente semelhante ao que se passou com o Recorrente: "Un exemple typique de ces pratiques est l’inculpation conjointe pour bande armée et pour le port des armes censées appartenir, par une déduction tout particulière, à la dite ‘bande’ ou les inculpations pour ‘concours psychique’ ou ‘moral’."
6 BOBBIO, Norberto; VIROLI, Maurizio, Direitos e deveres na República: os grandes temas da política e da cidadania. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 105.
7 BOBBIO, Norberto. Op. cit. (nota 3). p. 105.
para detenções preventivas, permitidas pelo artigo 10 do decreto-lei de 15 de setembro de 1979 por uma duração máxima de dez anos e oito meses."5
17. É público e incontroverso, igualmente, que os mecanismos de funcionamento da exceção operaram, na Itália, também fora das regras da própria excepcionalidade prevista em lei. Tragicamente, também no Estado requerente, no período dos fatos pertinentes para a consideração da condição de refugiado, ocorreram aqueles momentos da História em que o "poder oculto" aparece nas sombras e nos porões, e então supera e excede a própria exceção legal. Nessas situações, é possível verificar flagrantes ilegitimidades em casos concretos, pois a emergência de um poder escondido "é tanto mais potente quanto menos se deixa ver"6.
18. Isso é professado em nome da preservação do Estado contra os insurgentes, que não é menos ilegítima do que as ações sanguinárias dos insurgentes contra a ordem. Também me valho da lição de Bobbio:
"Quem decidiu ingressar num grupo terrorista é obrigado a cair na clandestinidade, coloca o disfarce e pratica a mesma arte da falsidade tantas vezes descrita como uma das estratagemas do príncipe. Mesmo ele respeita escrupulosamente a máxima segundo a qual o poder é tanto mais eficaz quanto mais sabe, vê e conhece sem se deixar ver."7
19. Por outro lado, entre os teóricos do Direito que não crêem na democracia liberal, Carl Schmitt, afirma: "Na necessidade suprema o direito supremo prova o seu valor [bewährt sich] e manifesta-se o grau mais elevado da
8 SCHMITT, Carl. O führer protege o Direito. In MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 221.
9 Cf. documentos da Anistia Internacional constantes das fls. 88-91 dos autos de solicitação de refúgio.
10 Cf. CPT/Inf (2007) 26. Rapport au Gouvernement de l’Italie relatif à la visite effectuée en Italie par le Comité européen pour la prévention de la torture et des peines ou traitements inhumains ou dégradants (CPT) du 16 au 23 juin 2006. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2007, disponível em
11 O voto condutor da decisão apresenta a constatação límpida de que houve no caso crime político: "não há dúvida de que se tratava de insubmissão à ordem econômica e social do Estado italiano, por razões políticas, inspiradas na militância do paciente e de seu grupo." Voto do relator, Min. Sidney Sanches, p. 35 (item 21).
Realização judicantemente vingativa desse direito. Todo o direito tem a sua origem no direito do povo à vida. Toda a lei do Estado, toda a sentença judicial contém apenas tanto direito quanto lhe aflui dessa fonte. O resto não é direito, mas um ‘tecido de normas positivas coercitivas’, do qual um criminoso hábil zomba"8. Ou seja, para Schmitt, as conquistas jurídicas humanistas das luzes não valem, porque delas o delinqüente inteligente pode zombar. Para Bobbio, no entanto, quanto mais exceção, menos Democracia e menos Direito.
20. Determinadas medidas de exceção adotadas pela Itália nos "anos de chumbo", por sinal, ressoam ainda hoje nas organizações internacionais que lidam com direitos humanos. A condenação a determinados procedimentos e penas motivou, de um lado, relatórios da Anistia Internacional9 e do Comitê europeu para a prevenção da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes10 e, de outro, a concessão de asilo político a ativistas italianos em diversos países, inclusive não europeus.
21. Outros evadidos da Itália por motivos políticos vinculados à situação do país na década de 1970 e início dos anos 1980, mesmo período da fuga do Recorrente, não foram extraditados para o país pelo Supremo Tribunal Federal. Note-se, nesse sentido, a Extradição nº 694, na qual a condenação italiana, como no caso do Recorrente, apontava o objetivo do extraditando de "subverter violentamente a ordem econômico e social do Estado italiano, de promover uma insurreição armada e suscitar a guerra civil no território do estado, de atentar contra a vida e a incolumidade das pessoas para fins de terrorismo e de eversão da ordem democrática."11
22. A preocupação com os limites do poder de "exceção" deve ocorrer – mesmo nos seus momentos mais duros – tanto no que se refere às normas de ordem material, como naquelas de ordem processual. Todas as normas, sejam
12 "A necessidade, a razoabilidade, a proporcionalidade a proibição do excesso e do abuso devem servir de escudo para limitar o absolutismo, como se vê na atual legislação pátria sobre a custódia cautelar em casos de extradição" (MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (coord.), Tratado luso-brasileiro da dignidade humana, São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 573). "A proporcionalidade consiste em uma estrutura formal de relação meio-fim, a razoabilidade traduz uma condição material para aplicação individual da justiça. Daí porque a doutrina alemã, em especial, atribui significado normativo autônomo ao dever de razoabilidade. IN: ALBRECHT, apud BARROS, Suzana de Toledo. O principio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília, Jurídica, 1996. p. 69".
13 DWORKIN, Ronald, Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 222: "The simple Draconian propositions, that crime must be punished, and that he who misjudges the law must take the consequences, have an extraordinary hold on the professional as well as the popular imagination. But the rule of law is more complex and more intelligent than that and it is important that it survive."
14 A esse respeito convém trazer à baila que "O asilo territorial, que não deve ser confundido com o diplomático, pode ser definido como a proteção dada por um Estado, em seu território, a uma pessoa cuja vida ou liberdade se acha ameaçada pelas autoridades de seu país por estar sendo acusada de haver violado a sua lei penal, ou, o que é mais freqüente, tê-lo deixado para se livrar de perseguição política.", SILVA, G.E. do Nascimento e, Manual de Direito Internacional, Editora Saraiva, 15ª Edição, 2002, p. 376.
Excepcionais ou não, carregam, no sistema de direito orgânico à democracia, o permanente apelo à "razoabilidade" e à "proporcionalidade"12. É fundamental, portanto, que aos que desobedecem a lei sejam estendidas todas as garantias da ordem jurídica democrática13.
23. O Recorrente sentiu diretamente os efeitos da legislação de exceção italiana. As acusações sobrepostas a que respondeu foram possibilitadas pelos procedimentos e tipos penais singulares desenvolvidos pelo Estado requerente, em grande parte aplicáveis por força do envolvimento do Recorrente no grupo conhecido como PAC (Proletários Armados para o Comunismo).
24. Após fugir da Itália em 1981, o Recorrente foi condenado pela Justiça do país, como autor e co-autor de homicídios ocorridos entre junho de 1978 e abril de 1979. Vislumbra o Recorrente, no caso, falta de oportunidades para que desenvolvesse sua ampla defesa. Nesse sentido, é de se notar que as acusações não buscam esteio em provas periciais, fundamentando-se precipuamente em uma testemunha de acusação implicada pelos próprios fatos delituosos, qual seja, o delator premiado Pietro Mutti.
25. Poderia argüir-se que as acusações que pesam sobre o Recorrente dizem respeito à violação da lei penal comum, não fosse o fato de que tais acusações constituem, em alguns casos, a "justificativa" jurídica do Estado requerente, sem a qual as chances de entrega do nacional requerido ficaram indubitavelmente prejudicadas14.
15 Primeiro Tribunal do Júri de Apelação de Milão. Sentença 17/90 – nº 86/89 e 50/85 do Registro Geral, de 13/12/1988. Item 49 (antes 50). Expressão idêntica à sublinhada acima encontra-se no item 114 (antes 123) dos mesmos autos.
16 Cossiga, porém, foi ignorado, mesmo quando exerceu a presidência do Conselho italiano, ao alertar para os perigos da manutenção destas medidas e defender uma anistia ampla para os perseguidos nos "anos de chumbo". Cf. MUCCHIELLI, Jacques. "Article 41-bis et prisons italiennes". In ARTIÈRES, Philippi, LASCOUMES, Pierre (org.), Gouverner, enfermer – la prison, un modèle indépassable? Paris: Presses de Sciences Po, 2004, p. 247.
26. É sintomático, nesse sentido, que as decisões condenatórias, ao arrolar os tipos penais que o Recorrente teria praticado, apontem serem todas integrantes de "um só projeto criminoso, instigado publicamente para a prática dos crimes de associação subversiva constituída em quadrilha armada, de insurreição armada contra os poderes do Estado, de guerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda no território nacional para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio País"15.
27. Segundo o Recorrente, a natureza política de seus crimes é não apenas evidente como confirmada pela maneira de o Estado requerente haver conduzido os processos criminais e os pedidos de extradição. Corroboram essa perspectiva as qualificações dadas a seus atos pelos processos de condenação em primeira instância e o fato de ser preso na Divisione investigazioni generali operazioni speciali, onde se lotavam os presos políticos dos "anos de chumbo".
28. O Recorrente junta aos autos carta de Francesco Cossiga, influente político italiano nos anos 1970, que participou ativamente da elaboração das leis de emergência italianas16. Hoje Senador da República italiana, Cossiga atesta que os "subversivos de esquerda" passaram a ser tratados, na Itália dos "anos de chumbo", como "simples terroristas e talvez absolutamente como ‘criminosos comuns’." O missivista assevera, contudo, a impropriedade desta classificação impingida ao Recorrente:
"Vocês todos, de esquerda e de direita eram ‘revolucionários impotentes’: em particular vocês subversivos de esquerda que acreditavam com actos de terrorismo, não certamente de poder ‘fazer’, mas pelo menos ‘escorvar’ a revolução, conforme os ensinamentos de Lenin, que condenava em via de princípio o ‘terrorismo’, mas que justificava ou melhor achava útil e ‘legítimos’
17 Carta vertida para o português, constante da fls. 55 dos autos de solicitação de refúgio.
18 BOBBIO, Norberto et.al, Dicionário de Política, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2ª edição, 1986, p. 1185: "Na prática, por um lado, o moderno Estado de direito procurou sempre limitar ao máximo, quando não eliminar, a possibilidade da existência de alguém que decida acerca do Estado de exceção e que possua poderes excepcionais (a moderna figura do estado de sítio é uma ditadura confiada, isto é, um poder constituído), enquanto, por outro lado, historicamente, o Estado de exceção tem sido proclamado por quem não possuía habilitação para tanto, e que se tornou soberano somente na medida em que conseguiu restabelecer a unidade e a coesão política."
Dum ponto de vista do marxismo-lenininsmo, os atos de terrorismo só se ‘propedêuticos’ a revolução e capazes de conduzi-la. Os crimes que a subversão de esquerda e a eversão de direita cumpriram, são certamente crimes, mas não certamente ‘crimes comuns’, porém ‘crimes políticos’."17
29. A respeito da criminalidade política e de sua caracterização em face dos instrumentos de cooperação internacional, observe-se o ensinamento de Francisco Rezek, Direito Internacional Público, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 214-215:
"Asilo político é o acolhimento, pelo Estado, de estrangeiro perseguido alhures – geralmente, mas não necessariamente, em seu próprio país patrial – por causa de dissidência política, de delitos de opinião, ou por crime que, relacionados com a segurança do Estado, não configuram quebra do direito penal comum. Sabemos que no domínio da criminalidade comum – isto é, no quadro dos atos humanos que parecem reprováveis em toda parte, independentemente da diversidade de regimes políticos – os estados se ajudam mutuamente, e a extradição é um dos instrumentos desse esforço cooperativo. Tal regra não vale no caso da criminalidade política, onde o objetivo da afronta não é um bem jurídico universalmente reconhecido, mas uma forma de autoridade assentada sobre ideologia ou metodologia capaz de suscitar confronto além dos limites da oposição regular num Estado democrático."
30. Não resta a menor dúvida, independentemente da avaliação de que os crimes imputados ao recorrente sejam considerados de caráter político ou não – aliás inaceitáveis, em qualquer hipótese, do ponto de vista do humanismo democrático – de que é fato irrefutável a participação política do Recorrente, o seu envolvimento político insurrecional e a pretensão, sua e de seu grupo, de instituir um poder soberano "fora do ordenamento"18. Ou seja, de constituí-lo pela via revolucionária através da afronta política e militar ao Estado de Direito.
19 ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro. 2a ed. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 34.
20 VERDÚ, Pablo Lucas, La Constitución Abierta y sus «enemigos», Madrid: Beramar, 1993, p. 91: "De todo lo expuesto cabe deducir que la apertura impregna a casi todos textos constitucionales democráticos. A mi italiano, aliás, motivos estes que levaram o presidente Mitterrand a acolher o recorrente e vários militantes da extrema esquerda italianos na mesma situação.
31. Aspecto muito importante aqui, para examinar a pertinência de concessão do refúgio, é que o Recorrente esteve abrigado em solo francês por razões políticas aceitas por decisão soberana do chefe de Estado daquele país. Aliás, na oportunidade o presidente François Mitterrand acolheu os "subversivos" sob a condição categórica de que fizessem a renúncia formal à luta armada.
32. Não é singelo o fato de que o Recorrente tenha feito expressa opção por renunciar aos meios não pacíficos de manifestação política. Hannah Arendt alerta que "se a mente é incapaz de fazer a paz e de induzir a reconciliação, ela se vê de imediato empenhada no tipo de combate que lhe é próprio"19 – e por isso mesmo a autora ressalta a dimensão política dos juízos retrospectivos. Entre o passado e o futuro, o homem conta apenas com si mesmo para ceder ou resistir aos impulsos de amor e ódio, fúria ou compaixão, impulsos que se confundem quando destino e motivações, desejos e princípios são mesclados.
33. Após a renúncia à luta armada, o Recorrente permaneceu na França, por um período de mais de uma década. Constituiu família, casando-se e tendo duas filhas, vivendo pacificamente como zelador e escritor. O Recorrente, em suas próprias palavras, teria permanecido na França se pudesse, onde inclusive formulou pedido de naturalização e gozava de um asilo político informal.
34. A situação do Recorrente foi alterada durante o governo do presidente Jacques Chirac. O abrigo do recorrente, no território francês, foi desconstituído e então anulado por razões eminentemente políticas. A mudança de posição do Estado francês, que havia lhe conferido guarida como militante político de extrema esquerda, foi o motor único de seu deslocamento para o Brasil. A extradição do Recorrente à Itália, que primeiro havia sido negada na França por razões políticas, foi posteriormente concedida pelas mesmas razões.
35. O Brasil, em vista desses acontecimentos políticos (mormente a mudança de governo na França), passou a ser "depositário" de um cidadão, de fato expulso de um território por decisão política, que se contrapôs à decisão anterior, a qual havia o reconhecido como perseguido político20.
Entender esto significa varias cosas a) La apertura constitucional evidencia que una Constitución no está sola porque la interdependencia internacional se ha incrementado notablemente, en los últimos tiempos aunque debe incrementarse. La recepción de contenidos internacionales en los documentos fundamentales; la referencia a los mismos para la interpretación de los derechos humanos (art. 10,2 C.E.); la incorporación Del derecho comunitario en los ordenamientos europeos, lo corroboran. Ya no cabe hablar de soledad de la Constitución, y considerarla como un Universo cerrado y excluyente sino de un pluriverso basado en el pluralismo interno, internacional y comunitario."
36. Por motivos políticos o Recorrente envolveu-se em organizações ilegais criminalmente perseguidas no Estado requerente. Por motivos políticos foi abrigado na França e também por motivos políticos, originários de decisão política do Estado Francês, decidiu, mais tarde, voltar a fugir. Enxergou o Recorrente, ainda, razões políticas para os reiterados pedidos de extradição Itália-França, bem como para a concessão da extradição, que, conforme o Recorrente, estariam vinculadas à situação eleitoral francesa. O elemento subjetivo do "fundado temor de perseguição" necessário para o reconhecimento da condição de refugiado está, portanto, claramente configurado.
37. À luz do que foi brevemente relatado, percebe-se do conteúdo das acusações de violação da ordem jurídica italiana e das movimentações políticas que ora deram estabilidade, ora movimentação e preocupação ao Recorrente, o elemento subjetivo, baseado em fatos objetivos, do "fundado temor de perseguição", necessário para o reconhecimento da condição de refugiado.
38. A título de esclarecimento, aponta-se a qualidade política da decisão sobre o refúgio. Segundo Francisco Rezek, Direto Internacional Público, São Paulo: Renovar, 2º vol., 15ª ed. 2004, verbis:
"A qualificação de tais indivíduos como refugiados, isto é, pessoas que não são criminosos comuns, é ato soberano do Estado que concede o asilo. Cabe somente a ele a qualificação. É com ela que terá início ou não o asilo."
39. É bom que reste claro que o caráter humanitário, que também é princípio da proteção internacional da pessoa humana, perpassa o refúgio, implicando o princípio in dubio pro reo: na dúvida, a decisão de reconhecimento deverá inclinar-se a favor do solicitante do refúgio.
40. Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu art. 4º a política de relações internacionais a ser observada no País:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...)
X - Concessão de asilo político.
41. As normas internacionais que o Brasil está obrigado a observar consignam, ainda, no capítulo da proteção da pessoa humana, que o pedido de refúgio deve ser julgado pela Autoridade com atenção detida e serena ao caráter protetivo da medida. Nesse contexto, transcrevo o art. XIV da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que inspirou os princípios das convenções supervenientes, bem como a Declaração sobre asilo territorial aprovada pela Assembléia da ONU, respectivamente:
Todo homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar gozar asilo em outros países.
Toda pessoa vítima de perseguição tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países.
42. Por fim, assinala-se que não há impedimentos jurídicos para o reconhecimento do caráter de refugiado do Recorrente. Embora se reporte a diversos ilícitos que teriam sido praticados pelo Recorrente, em nenhum momento o Estado requerente noticia a condenação do mesmo por crimes impeditivos do reconhecimento da condição de refugiado, estabelecidos no art. 3º, inc. III, da Lei nº. 9.474/97, o que importa no afastamento das vedações estabelecidas no citado comando legal:
Art. 3º Não se beneficiarão da condição de refugiado os indivíduos que: (...)
III - tenham cometido crime contra a paz, crime de guerra, crime contra a humanidade, crime hediondo, participado de atos terroristas ou tráfico de drogas;
43. Concluo entendendo, também, que o contexto em que ocorreram os delitos de homicídio imputados ao recorrente, as condições nas quais se desenrolaram os seus processos, a sua potencial impossibilidade de ampla defesa face à radicalização da situação política na Itália, no mínimo, geram uma profunda dúvida sobre se o recorrente teve direito ao devido processo legal.
44. Por conseqüência, há duvida razoável sobre os fatos que, segundo o Recorrente, fundamentam seu temor de perseguição.
45. Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso para reconhecer a condição de REFUGIADO a CESARE BATTISTI, nos termos do art. 1º, inc. I, da Lei nº. 9.474/97.
46. Notifique-se ao CONARE, para ciência do solicitante, ao Departamento de Polícia Federal e à Secretaria Nacional de Justiça, para as providências devidas, bem assim ao Egrégio Supremo Tribunal Federal, para as providências cabíveis.
Brasília 13 de janeiro de 2009.
TARSO GENRRO
Ministro de Estado da Justiça
Eis a íntegra do artigo de Dallari, Refugiados, uma decisão soberana do Brasil, publicado na Folha de S. Paulo de 19/01:
Uma decisão recente do ministro da Justiça do Brasil, concedendo o estatuto de refugiado ao cidadão italiano Cesare Battisti, merece especial atenção por sua importância dos pontos de vista ético, jurídico e político.É oportuno lembrar que toda a história brasileira, desde 1500, é uma constante de concessão de abrigo e proteção a pessoas perseguidas por intolerância política, discriminação racial ou social e outros motivos injustos, como o uso arbitrário da força.Assim, na segunda metade do século 20, pessoas perseguidas por se oporem aos regimes comunistas estabelecidos na Europa oriental, assim como outras que sofriam perseguição em países vizinhos do Brasil, por se oporem a governos fortes de extrema direita, procuraram e obtiveram no Brasil a condição de refugiados.Deixando de lado as conveniências políticas e dando a devida prioridade aos valores do humanismo, o Brasil decidiu soberanamente, com independência, e concedeu aos perseguidos a proteção de sua ordem jurídica. No caso de Cesare Battisti estão presentes os requisitos fundamentais para a concessão do estatuto de refugiado, como fica evidente pela análise dos antecedentes do caso e pelo exame sereno dos dados do processo, minuciosamente expostos pelo ministro da Justiça.Há pouco mais de 30 anos, Battisti foi militante de um grupo político armado, de orientação esquerdista. O governo italiano da época, de extrema direita, estabeleceu o sistema de delação premiada, pelo qual os militantes que desistissem da luta armada e delatassem seus companheiros ficariam livres de punição. Com base numa delação premiada, Battisti foi acusado da prática de quatro homicídios, sendo condenado à prisão perpétua.Além de só haver como prova as palavras do delator, dois desses crimes foram cometidos no mesmo dia, em horários muito próximos e em lugares muito distantes um do outro, de tal modo que seria impossível que Battisti tivesse participado efetivamente de ambos os crimes.Dispõe expressamente a lei nº 9.474, de 1997, que trata do Estatuto dos Refugiados no Brasil, que será reconhecido como refugiado o indivíduo que, devido a fundados temores de perseguição por motivo de opinião política, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não queira acolher-se à proteção de tal país.Além daquela contradição no julgamento de Battisti, outro dado revelador é a enxurrada de ofensas e agressões de ministros do governo italiano ao governo e ao povo do Brasil pela decisão do ministro Tarso Genro.Reagindo com extrema violência, o ministro do Exterior convocou o embaixador brasileiro na Itália para exigir a mudança da decisão, ao mesmo tempo em que outros ministros fizeram ameaças de represália, inclusive de boicote da participação do Brasil em reuniões internacionais.Entretanto, muito recentemente o governo da França negou atendimento a pedido italiano de extradição de Marina Petrella, que, como Battisti e na mesma época, foi militante de um movimento político armado, as Brigadas Vermelhas. O governo italiano acatou civilizadamente a decisão francesa, reconhecendo tratar-se de um ato de soberania. Qual o motivo da diferença de reações? O governo e o povo do Brasil não merecem o mesmo respeito que os franceses?Essa diferença de comportamento dos ministros italianos deixa mais do que evidente que é plenamente justificado o temor de Battisti de sofrer perseguição por motivo político. A reação raivosa dos ministros italianos não dignifica a Itália e elimina qualquer dúvida.Por tudo quanto foi exposto, a decisão de Tarso Genro merece todo o acatamento. Expressa em linguagem clara e objetiva, deixando evidente sua inspiração humanista, livre de preconceitos ou parcialidade de qualquer espécie, a decisão tem sólido fundamento em dados concretos e faz aplicação correta e precisa dos preceitos jurídicos que regem a matéria.A concessão do estatuto de refugiado a Cesare Battisti é um ato de soberania do Estado brasileiro e não ofende nenhum direito do Estado italiano nem implica desrespeito ao governo daquele país, não tendo cabimento pretender que as autoridades brasileiras decidam coagidas pelas ofensas e ameaças de autoridades italianas ou façam concessões que configurem uma indigna subserviência do Estado brasileiro.
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