Peço vênia para mais uma vez adentrar a uma senda árida e
fértil de argumentos. Procurarei ser ao máximo sucinto, sem descurar-me da
qualidade do conteúdo, trazendo os argumentos da posição que defendo e que me
são mais caros. E do que afinal tratar-se-á? Perquirirei a seara da eutanásia e
da ortotanásia, possibilidades em que a bioética e o biodireito jamais
encontrarão o consensus, como em
qualquer questão que toque no campo da fé religiosa, precipuamente em se tratando
da relação vida X morte sem que se vislumbre a direta “participação divina”...
Antes de propriamente explorar um pouco esse tormentoso campo, conceitos devem ser aclarados como facilitadores para uma mais hígida compreensão. Abdicarei de um maior tecnicismo para que se proporcione uma melhor visualização temática.
E o que seria eutanásia? Em amplos termos é a provocação
intencional da morte de certa pessoa que sofre de enfermidade extremamente
degradante e incurável visando privá-lo dos suplícios decorrentes da doença.
Por sua raiz grega quer significar “boa morte”, forma digna de morrer.
Diferente conceito reverbera-se da ortotanásia. Por esse, a morte se dá sem a interferência ativa de terceiro, de qualquer agente. Por essa prática abdica-se do prolongamento da vida que só se mantinha graças às modernas tecnologias dos aparelhos que a medicina dispõe. Uma expressão revela o melhor significado para ortotanásia: “Desliguem os aparelhos”. Por isso, pode-se dizer tratar-se de uma morte natural. Há quem a chame de “eutanásia por omissão”.
Por último, a fim de completar as possibilidades, extrai-se
a distanásia, como literalmente o oposto da eutanásia. Revela-se a prática
defendida pelos homens mais ortodoxos de fé e pelos mais apegados à vida
terrena, custe o que custar (sem qualquer analogia televisiva). Prolonga-se a
vida da pessoa enferma, incurável, que agoniza de forma muitas vezes indigna
sobre seu leito, que será o de sua morte.
O ordenamento pátrio ainda não aceita nem a ortotanásia nem muito menos a eutanásia, tratando-as no Código Penal na figura de homicídio privilegiado, dada a inexistência de um tipo penal individual para essas práticas. No entanto, perspectivas de mudanças avistam-se, ainda que a passos de cágado, e estão sendo discutidas no anteprojeto do CP, fazendo uma leitura mais humanizada e aceitando-se que no conceito de vida digna está o de morte digna, em uma dicção mais consentânea, inclusive, com o Estado laico ao qual constitucionalmente nos filiamos, onde as razões impulsionadas pela fé religiosa devem ser respeitadas pelo Estado, desde que se respeite a dignidade da pessoa humana.
O direito comparado é rico em exemplos, alguns a serem
seguidos outros a serem rejeitados com máxima veemência.
A China, por exemplo, traz um modelo absurdo, que carrega nítidos contornos de seu regime ditatorial-opressor, que cultiva mais o profundo desrespeito aos direitos humanos. Por lá, o comunismo autorizou a eutanásia em pacientes terminais (único requisito) por mera discricionariedade médica, por mera decisão administrativa. Aqui não se cogita, em real, do escopo de se poupar o sofrimento inútil, mas sim de incognoscível forma de controle qualitativo-demográfico, onde a vida humana passa a ser inservível por que assim entendeu o médico, onde a vida humana se assemelha a de um gado, assim mesmo desde que não seja um gado localizado em um país que os veem como um ser sagrado, ocasião que a vida humana valerá menos que a de uma vaca...
No Uruguai a eutanásia é uma espécie de crime permitido. Há
a figura penal do homicídio piedoso, que permite ao juiz isentar de pena o
agente que dolosamente provocar a morte de terceiro preenchidos os requisitos
de bons antecedentes, motivos altruístas voltados às condições objetivas de
padecimento da vítima e a manifestação reiterada da mesma pelo fim de sua vida.
Na Holanda e posteriormente na Bélgica vislumbramos um modelo que posso alcunhar como ideal-progressista. Por lá, a ortotanásia é permitida por decisão médica, tratando-se penalmente de fato atípico. Já a eutanásia é uma excludente de ilicitude, mas que para que não seja crime deverá ter preenchidos específicos requisitos (que o doente seja mentalmente capaz, que reitere expressa e voluntariamente seu desejo de morrer, esteja acometido de doença incurável, suportando sofrimento agonizante atestado por médico). O caso é submetido à comissão multidisciplinar, que em deferindo o pedido será remetido para ratificação e acompanhamento do MP.
Conforme firmei, entendo o modelo holandês como o mais fidedigno
com os direitos humanos, que pugna por uma vida digna através de uma morte
digna. Inelutável ser o Brasil um país subdesenvolvido na maior parcela dos
serviços públicos prestados. Somos mais próximos da República do Congo que do
Canadá quando se afere, por exemplo, nosso sistema público de saúde, indigno e
degradante. Por isso, faço uma ressalva ao sistema holandês quanto ao
procedimento da ortotanásia de se dar por mera decisão administrativa. Entendo
que para nossa realidade de um serviço público em maioria ainda selvagem, há
que se ter uma maior garantia, um maior controle para não se ceifar vidas por
negligência (ou outra modalidade culposa) e se colocar na conta da
ortotanásia... Com isso, defendo o mesmo modelo da eutanásia para ortotanásia,
havendo um controle do MP e do Estado-Juiz para uma decisão mais responsável.
O anteprojeto do novo CP está discutindo pela possibilidade de em preenchidos os elencados requisitos permitir-se a ortotanásia, mas continuará entendendo como crime a eutanásia, aplicando-se uma pena menos gravosa que a aplicada ao homicídio privilegiado. Ainda pairam discussões. Não se tem por certo se serão tratados no CP em tipos distintos e da forma clara que se espera, como discute-se se os familiares poderão interferir no destino do enfermo pré-morto que não mais se comunica, mas a ideia dos debatedores do anteprojeto perfaz-se nesse sentido.
É sem dúvida uma temática muito rica, que fatalmente (sem
qualquer analogia as práticas aqui tratadas) serão reprisadas e aprofundadas por
mim assim que se revelarem contornos mais nítidos da política criminal que
iremos adotar. Espero progresso, mas com respeito ao nosso subdesenvolvimento,
à nossa precariedade em matéria de serviços públicos dispensados às sociedades
menos abastadas... Maior número de audiências públicas revelar-se-ia medida
salutar e consentânea com o espírito democrático para conferir os finais
contornos desse progresso legislativo.
2 comentários:
Tema muito bem tratado. Vou copiar e darei o crédito.
Obrigado!
Agradeço Sarmento o texto. Vou usá-lo para o meu trabalho na universidade. faço direito e tenho que fazer um trabalho sobre alguma das mudanças do CP. Me salvou, está perfeito!
Muito obrigada!
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