Está por se sacramentar, salvo melhor juízo presidencial, ainda
sem controle judicial, que fatalmente se fará impreterível pelos contornos que
se apresentam uma escatológica profusão de impropérios inconstitucionais com
sérias consequências, alcançando, inclusive, repercussão na clausula pétrea do equilíbrio
do pacto federativo.
A democracia mal compreendida ou
mal utilizada pode se revelar um permissivo para abusos e violações capazes de
comprometer, por paradoxo, bases sólidas de sustentação da própria democracia,
consectários principiológicos de nossa República Federativa e atentar contra as
mais diversas lógicas de exegeses constitucionais, sejam elas semânticas,
históricas, sistemáticas ou teleológicas.
A democracia pautada na vontade
da maioria nem sempre respeita o que é justo, o que é de direito. Não avoco
argumentos toscos e pueris como o de que toda maioria é burra, mas avoco a
necessidade de se respeitar os direitos e argumentos das minorias, precipuamente
quando fundamentados na legitimidade de seus direitos, quando o ordenamento
lhes confere supedâneo para que as maiorias não restem desrespeitadas apenas
pelo fato de representarem faticamente uma maioria. Quando em uma democracia se
permite que minorias sejam apagadas, silenciadas por suas vozes e até mesmo
aviltadas por maiorias, não se está diante de uma verdadeira democracia, mas
diante da primitiva lógica de que vença o mais forte até a morte.
Quando percebemos que
determinadas maiorias criadas por interesses políticos possuem o poder de
rasgar o texto constitucional, alcançando suas bases principiológicas, neste
momento, a democracia se desconfigurou e provavelmente está sendo usada para
perpetrar interesses que uma República Federativa constitucionalizada haveria
de veementemente repelir, em regra interesses egoísticos contrários à lógica do
razoável.
Este artigo de opinião pretende
percorrer os tortuosos caminhos dos “royalties do petróleo”, o verdadeiro ouro-negro
deste país, que parece estar provocando ambições com força para evadir-se das cognitivas
lógicas esperadas. Através da Emenda Ibsen e da posterior Emenda Simon,
pretende uma maioria política subverter lógicas jurídicas inafastáveis
abstraindo consequências que não se poderiam defenestrar.
Entre janeiro e dezembro de 2009
a União recebeu quase 7 milhões de reais e os estados produtores em torno de 6
bilhões à título de royalties e participações especiais advindos da exploração
do petróleo. Só o Rio de Janeiro percebeu aproximadamente 5 bilhões de reais,
por ser de longe o maior produtor nacional.
As propostas legislativas já votadas
e aprovadas pelas duas Casas do Congresso no aguardo da sanção ou veto
presidencial pretendem alterar drasticamente a fórmula de distribuição das
participações devidas aos estados-membros e municípios em razão de serem
estados servientes a exploração marítima de petróleo. Pretendem as Emendas
mencionadas suprimir o pagamento de royalties e participações especiais dos
entes produtores e confrontantes atingindo contratos futuros e
teratologicamente contratos já firmados e em execução sob a vigência da Lei
9478/97. Proposta legislativa aprovada que engloba os campos que venham a ser
descobertos de petróleo como, inacreditavelmente, os já licitados, em uma
estimada perda anual de 7 bilhões aos cofres do Rio de Janeiro, receita
esperada que se subtraída é capaz de quebrar o estado ou minimamente
retirar-lhe a autonomia financeira conquistada.
A CRFB utiliza os termos
“participação no resultado” ou “compensação financeira”, já a Lei do Petróleo
(L. 9478/97) utiliza-se da expressão “participações governamentais”, que inclui
entre outros termos que não interessam a presente exposição, os royalties e a participação
especial, objetos a serem trabalhados. Participação especial, vale dizer, que
deve ser paga no caso em que o lote licitado apresente um volume de produção de
maior rentabilidade, nos termos do art. 47.
É histórico no Brasil, desde os
idos de 1953, data que se iniciou a indústria petrolífera no país. A lei
2004/53, que criou a Petrobras e dispôs sobre a Política Nacional de Petróleo
já previa a obrigação de distribuir compensações aos estados e municípios que
sofrem com o ônus de terem que manter em suas bases territoriais toda uma
infraestrutura capaz de suportar a demanda e os prejuízos da exploração.
Com a lei 7438/85, clareou-se a
legislação anterior, prevendo que o pagamento de royalties também seria devido
em razão da exploração de óleo e gás natural extraídos de plataforma
continental. Restava inconteste ainda, que o pagamento de royalties não teria
como fato gerador a propriedade da riqueza mineral extraída, que é da União
Federal, mas sim o ônus suportado pelos entes que tinham seus limites
territoriais explorados. A legislação ordinária mencionada previu que 1% dos
valores extraídos seria destinado a um Fundo Especial a ser distribuído entre
todos os estados e municípios, porcentagem que em nada se relaciona aos
royalties devidos aos estados e municípios produtores.
Em 1988, o direito de compensação
financeira dos estados e municípios afetados com a exploração destes minerais
ganhou “status” constitucional com a previsão do constituinte originário
constante do art. 21, Par. 1º CRFB. Mencionado artigo que foi regulamentado
pela L. 7990/89, que novamente reafirmou o dever de compensar financeiramente
os estados e municípios produtores, mantendo o Fundo Especial da legislação
anterior, apenas reduzindo o valor de 1% para 0,5%. Com a Lei do Petróleo (L.
9478/97), além de novamente contemplados os royalties como forma de compensação
aumentou de 5% para 10% o valor desta compensação aos estados produtores. Como
se percebe sempre se teve como primária prioridade a compensação aos entes
afetados com a exploração e secundariamente a distribuição de um “sobejar” aos
demais entes em nada afetados.
Volta a reafirmar, por se tratar
de um marco desta temática que, historicamente, desde 1953 ordinariamente, e
constitucionalmente a partir da Constituição a partir da Carta de 1988, sempre
se tutelou através de pagamentos de royalties os estados e municípios que
tinham suas bases territoriais exploradas pelos riscos e ônus próprios deste
tipo de atividade exploratória, chegando inclusive, a legislação de 1953, a
utilizar-se do termo indenização no lugar de compensação, tamanho o ônus
suportado. Este valor compensatório sempre se mostrou independente e de primaria
fundamentalidade em relação ao valor distribuído indistintamente aos demais
estados-membros, que em momento algum sofrem com os impactos exploratórios, que
reste claro e assentado.
O art. 21, par. 1º da CRFB é o
paradigma constitucional para toda legislação ordinária atinente ao tema. Legislação
ordinária que se afaste de seus contornos deve ser entendida como nula “ex-tunc”
e ter declarada sua inconstitucionalidade. Diante deste imbróglio hermenêutico,
há que se perceber a real interpretação do dispositivo mãe, o art. 21, par.1º
da Lei Maior, para que desta feita sejam traçados os limites onde a legislação
derivada ordinária poderá flutuar sem que extrapole os limites maternos.
Para uma perfeita interpretação
do artigo constitucional não vamos nos satisfazer com a utilização de apenas um
dos métodos interpretativos. A demonstração da inconstitucionalidade da lei
aprovada no Congresso será realizada de forma exauriente, a partir de todos os
métodos interpretativos que a clássica tradição Romano-Germânica colocou-nos a
disposição. Será demonstrado que todos os meios interpretativos levarão a mesma
unidade interpretativa, de que o art. 20, par.1º, da CRFB procurou a tutela dos
estados e municípios explorados.
Primeiramente, segundo a
interpretação gramatical possível ao texto normativo, a que confere os
contornos das normas que desta derivarão fala explicitamente em compensação
financeira devida em razão da exploração. A lógica que permite extrair é a de
que nada haveria a compensar quanto aos entes que não sofrem os ônus da
exploração. O vocábulo “compensação” é
excludente quanto aos estes não “avariados” e dirige-se indelevelmente por mera
semântica aos entes que suportam a criação e manutenção de todo um
aparelhamento infraestrutural de demandas, que suporte uma explosão demográfica
consequencial e que tenha capacidade técnica e financeira para suportar os
passivos ambientais que esta espécie de exploração impeli. Lembro, que toda e
qualquer palavra em um texto legal deve ter um sentido de existir, e a palavra “compensação”
não deixa qualquer dúvida minimamente aferível em sua ligação umbilical para
com os legitimados aos recebimentos dos royalties e participação especiais,
como um verdadeiro direito subjetivo destes. Evadir-se deste núcleo fundamental
do artigo constitucional é inelutavelmente eivar-se do vício de nulidade. Por
isso a Lei Federal deveria detalhar a repartição dos recursos sem distanciar-se
do núcleo fundamental do artigo constitucional.
Sob a perspectiva da interpretação
histórica, que leva em conta a conjuntura da qual restou produzida a norma, há
que se observar ao caso a intenção do legislador constituinte quando dispõe do
artigo constitucional sob comento. O artigo a veio chancelar as legislações
ordinárias anteriores servindo ao propósito de promover o mandamento
infraconstitucional ao “status” mais elevado de nosso ordenamento jurídico, ao “status”
de norma constitucional como forma de produzir-lhe maior segurança. Como
demonstrado, data de 1953 a compensação aos entes produtores quando se iniciou
a regulação do petróleo no Brasil e se criou a Petrobrás, e desta forma caminha
até os hodiernos dias em respeito a uma mínima lógica racional, que jamais afastou-se
deste balizamento ratificado em 1988 pela CRFB, que chancelou o modelo até
então vigente quando poderia alterá-lo se olvidasse a busca de uma outra razão
para tutelar, que não a de compensar.
É propriamente na interpretação
sistemática que o estrutura criada de pagamento de royalties aos produtores
encontra sua principal coordenação. Pois vejam, consabido é que o ICMS. Em regra
é pago no estado de origem e representa a maior forma de receita tributária do
estado. Pois bem, ao depararmos com a leitura do art. 155, par.2º, X, b da
Carta Maior, percebemos que os estados produtores de petróleo não se beneficiam
com a tributação de ICMS, que excepcionalmente não é tributado na origem, mas no
estado de destino do produto. E qual a “ratio essendi” desta exceção? A de não
favorecer os estados produtoras de petróleo, já que estes contam com os
royalties e participações especiais nos termos do art. 20, par. 1º como forma
de compensação. Esta interpretação já foi inclusive destacada pelo ex-ministro
do Supremo Nelson Jobim em um de seus votos quando ainda era ministro da Casa.
Não pode o legislador ordinário agora querer subverter a sistemática desta
compensação retirando o direito subjetivo aos royalties dos estados produtores,
pois assim agindo não apenas contrariará a norma constitucional do art. 20,
par.1º, mas desconfigurará o sistema previsto pelo constituinte originário. Em
se tratando de uma Lei Federal poder-se-ia cogitar que a União abdicasse de
parcela sua em favor dos demais estados-membros, jamais de parcela que não lhe
pertence, que pertence aos estados produtores.
Como se não bastassem todo este
complexo expositivo a fundamentar a inconstitucionalide do que o Congresso veio
a aprovar, resta a análise do critério teleológico de interpretação, onde se
busca a finalidade da norma. Por este, e baseando-se em tudo que até o memento
já se disse, a finalidade da norma é sem sombra de dúvidas a de compensar os
estados e municípios explorados com os royalties e participações especiais
devidos aos impactos ambientais e socioeconômicos que se encontra “in re ipsa”
nesta atividade. A partilha “pro-rata” e sem distinção jamais foi a finalidade
normativa legal ou constitucional do sistema conforme se demonstrou. Não
haveria como não compensar os gastos excedentes com segurança pública, transporte,
urbanismo, habitação, meio ambiente, enfim, os gastos estruturais necessários
para a suportabilidade desta atividade, onerando demasiadamente os estados
produtores em proveito de todos, quando só os produtores suportariam o ônus e consequências
da exploração.
Passada a fase onde restou sobejamente
comprovada a legitimidade dos estados onerados para o recebimento dos royalties
como fator compensador dos ônus suportados através de todos os métodos de
interpretação disponíveis, passa-se a fundamentar a inconstitucionalidade do
que se aprovou no Congresso a partir dos princípios constitucionais regentes de
todo nosso ordenamento.
Salta aos olhos a violação ao
princípio da isonomia material, que ordena valorar igualmente situações iguais
de desigualmente situações desiguais na medida de suas desigualdades. O
tratamento linear a situação desiguais acarreta uma discriminação e violadora
do princípio. As desigualdades fáticas devem acarretar um tratamento desigual
como forma de compor essa desigualdade e desta forma encontrar-se a igualdade
material desejada, a partir de um fim constitucionalmente legítimo, respeitados
os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Poupar-me-ei de repetir
todos os argumentos já acostados reveladores manifestos da desigualdade a ser
compensada, fazendo lembrar que o sistema preparou-se para o propósito de
compensar a partir de qualquer método interpretativo que se busque perpetrar. O
tratamento desigual denota-se constitucionalmente legítimo e consentâneo ao
princípio da isonomia material para que seja mantido o equilíbrio federativo.
Outra violação que se revela um “inqualificável”
jurídico agride sem pena o princípio da segurança jurídica, um dos fundamentos
do estado e do direito ao lado do bem estar social. Busca a paz social através
da previsibilidade das condutas e estabilidade das relações jurídicas e sociais
através do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada em âmbito
constitucional. Em âmbito infraconstitucional, no mesmo propósito encontram-se
institutos como a prescrição e a decadência, que obedecem a mesma lógica. O
texto aprovado prevê o afastamento das receitas decorrentes dos novos contratos
e em clara violação ao princípio em comento afasta ainda as receitas dos
contratos já firmados e em fase de execução, em absurda frustração das legítimas
expectativas do recebimento das receitas que desde a década de 30 recebe. E as
obrigações assumidas a partir das receitas que já faziam parte do orçamento dos
estados produtores? Com a suspensão dos pagamentos de royalties de inopino construir-se-á
estados incapazes de honrar seus contratos tendentes a insolvência. Estados
incapazes de cumprirem as normas orçamentárias, a LRF (Lei de Responsabilidade
Fiscal) e o Plano de Restruturação e ajuste Fiscal contido na Lei 9497/97.
Sancionada esta lei pelo Executivo
federal o pacto federativo estará seriamente comprometido. A uma porque Lei
Federal imporia uma oneração desarrazoada dos entes produtores sem a
contrapartida compensatória dos royalties, e o estado produtor ainda manter-se-ia
privado do tributo que é sua maior arrecadação, conforme já detalhado, o ICMS,
que pela sistemática atual não é recolhido no estado de produtor, de origem,
pelo fato de ser este o receptor dos royalties e participações especiais. O
desequilíbrio do sistema caso sancionada a lei será manifesto e lastimável. A
duas, por outro fator que já se fez ventilar, pelo fato de comprometer
seriamente a autonomia financeira do ente federativo alijado dos royalties que
organizou-se financeiramente com base nesta substancial receita. Razões de
ordem política não podem se sobrepujar as razões de ordem constitucional a
ponto de ferir norma, princípios e todo um sistema.
O caso do Rio de Janeiro é ainda
de maior gravidade, não só por ser o que mais recebe receitas provenientes dos
royalties, não só por ter compromissos maiores que os dos demais estados
produtores de infraestrutura como ainda por ter sido escolhido a sede da
próxima Copa do Mundo (2014) e das olimpíadas de 2016. Quando foi escolhido
como sede contava com os royalties como parte fundamental para manutenção de
seu equilíbrio econômico-financeiro para investimentos de grande porte com o
apoio de verba federal. Surrupiada esta receita, já não contando com a receita
tributária do ICMS o estado do RJ se tornará um contumaz inadimplente sem que
responsabilidade alguma lhe possa ser atribuída. Mas não paramos nisto, a União
assinou com o estado do Rio de Janeiro um Programa de Restruturação e Ajuste
Fiscal de refinanciamento de suas dívidas junto a União no valor de 2 bilhões
de reais. Ocorre que a amortização dessa dívida deve ser feita com a cessão de
créditos provenientes dos “royalties” e participações especiais que o estado do
Rio recebe como receita, sob pena de ter que abdicar de outras receitas advindas
de outros impostos em favor da União, que ainda poderá interromper a
transferência de outras receitas advindas de transferências constitucionais de
renda. Há, portanto um contrato que vincula os royalties do petróleo a dívida
com a União Federal, ou seja, a existência de ato jurídico perfeito, uma das
formas que a Constituição elegeu para garantia do princípio da segurança
jurídica. É lei Federal (União) ferindo ato jurídico perfeito, portanto a
segurança jurídica das relações na federação, portanto a cláusula do pacto
federativo.
De todo o exposto este artigo
procurou demonstrar que razões de ordem política não podem de uma hora para
outra subverter todo um sistema que possui a tutela constitucional atingindo
seriamente princípios orientadores de toda a Constituição e, por conseguinte de
todo ordenamento como são dos princípios da isonomia material, da segurança jurídica,
do pacto federativo e do interpretativo princípio da razoabilidade.
Por maioria, os estados em suas
representações nas Casas legislativas não podem se unir contra outros poucos no
propósito de se auto beneficiarem às custas da destruição da minoria, passando
por cima de todos os preceitos de albergue constitucional aqui expostos a ponto
de causarem uma verdadeira guerra entre entes da federação, isso não é
democracia. O pacto federativo, conforme salientado, é cláusula pétrea e de
contornos fundamentais para a manutenção do Estado Democrático de Direito no
modelo federativo a que constitucionalmente nos filiamos.
Assim me parece.
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