Confesso ser um incorrigível amasiado
pelas palavras. Quando as percebo em processo de entrelaçamento sequencial na
formação de friccionados encaixes meticulosamente perfeitos e amoldados, o
orgasmo se faz inevitável. As palavras podem ser perversas e traidoras com quem
as usa, por isso o cuidado se faz necessário. Podem representar desde o nada,
uma broxante frigidez intelectual, como podem promover as mais sangrentas
guerras ou mais inspiradoras revoluções. As palavras podem promover um sentido
paradoxal se exaradas do mais eloquente silêncio, carreadas, por exemplo, por
uma representação simbólica através de um gélido ou efusivo olhar. Palavras
podem produzir engasgos, palavras podem fazer gozar. São multifacetadas e
repletas de possibilidades... Nada como uma bem costurada suruba vocabular...
Use-as com todo tesão, explore-as em abundância como se aquelas palavras fossem
as últimas a serem ditas...
Da anunciada renúncia do Papa Bento XVI,
nos termos do art. 332 do Código canônico, ainda não há muito a se dizer e
provavelmente o que se dirá ficará no âmbito das especulações. Sabidamente
fechada e de razões não publicizáveis, é a forma como a igreja Católica
historicamente sempre lidou com seus devotos, na melhor forma absolutista de
gestão social. Nesta data profana de carnaval fiquemos apenas com a notícia
eclesiástica seca. Teria havido um novo acerto de Nostradamus? Não me aventurei
neste ponto da fé.
Em contrapartida, após profanarmos carnavalescamente
sob os olhos de Deus, falemos sobre a relação Estado X Religião, o que dá muito
pano para manga.
As religiões por todos os períodos da
história procuraram promover palavras que representassem algo persuasivo de fé.
Respaldadas pela ignorância social de algumas culturas, com o fim dos regimes
absolutistas de Estados eclesiásticos, viram-se obrigadas a abdicar do uso das
forças física e moral e a palavra passou a ganhar seu protagonismo merecido no
poder de determinar o convencimento. Hoje, em especial a religião católica,
ainda produz uma forte influência nas decisões político-sociais dos Estados
culturalmente mais empobrecidos. Outras religiões, como as de
origem muçulmana foram as verdadeiras construtoras ideológicas de
certos Estados, seguindo a ultra-ortodoxia como linha ideológica. Estas
continuam a impor seus dogmas ditatoriais e vedando quaisquer espécies de
liberdade, há sim, um antidemocrático dirigismo religioso.
Em nossa peculiar verdade temos origem
católica, formamos uma sociedade culturalmente desnutrida, somos o primeiro
país em número de católicos do mundo, mas conseguimos desvincular a igreja das
decisões de Estado, estamos bem próximos de uma completa alforria social...
Hoje, no Brasil, à igreja não é dado mais o poder do cometimento de abusos,
hodiernamente só é abusado quem quer, quem consentir, salvo algumas vítimas de
pedofilia...
O Estado, no entanto, por respeitar a
liberdade religiosa, ainda agracia a igreja e seus fiéis com certos privilégios
como a escusa de consciência por motivos religiosos e a imunidade tributária. A
sociedade ainda encontra-se em gradual processo de compreensão no atinente a
desvinculação da igreja do Estado, que razões religiosas, por exemplo, não
podem fundamentar quaisquer decisões judiciais, sob pena de nulidade. Que não
por isso nos tornamos um Estado ateu ou agnóstico, mas constitucionalmente
assumimos a coerente posição de um Estado laico, uma decisão de respeito à
democracia, à igualdade e às liberdades.
A CF, em seu art. 5º, VI, dispõe sobre a inviolabilidade
das liberdades de consciência e de crença, assegurando o livre exercício de
cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto
e suas liturgias. O art. 19, I do mesmo diploma maior, mostra-se muito
significativo para melhor compreensão. Proclama ser vedado ao poder público
estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento
ou manter com eles ou seus representantes relação de dependência ou aliança,
ressalvada, na forma da lei, colaboração de interesse público. Prova que o
Estado mantêm-se laico e respeitando e incentivando as liberdades religiosas,
percebemos ao ler o preâmbulo de nossa Constituição, na referência a Deus nas
notas de dinheiro, na possibilidade da atuação de bancadas religiosas em nosso
cenário político sem embaraços, na manutenção de datas religiosas como
feriados, no respeito aos feriados judaicos e na possibilidade de alteração de
datas de concursos e vestibulares para os adventistas de sétimo dia.
O laicismo baseia-se no princípio da
tolerância, no respeito das diversas liberdades de crença, de opinião, de
pensamento e no trato das diversas religiões como iguais. Países como o Irã
adotaram o modelo teocrático, onde Estado e religião se fundem. Já fomos, no
Brasil império, um Estado confessional onde a igreja católica era a igreja
oficial. Nesse período as liberdades religiosas eram bem mais restritas, os
cultos não católicos deviam se ater ao âmbito privado da residência dos fiés.
Havia liberdade de crença, restringiam-se porém as liberdades de culto. Com a
Proclamação da República em 1889, Rui Barbosa redigiu um decreto em 1890
separando definitivamente a religião do Estado. A CF de 1891 tornou-se o marco
inicial do Brasil como Estado laico, jamais revelando-se novamente um Estado
confessional. Mesmo a Constituição de 67/69 (de vestes ditatoriais) manteve-se
reconhecendo os primados do Estado laico, apenas não previa a escusa de
consciência, acarretando a perda dos direitos políticos em caso de recusa do
cumprimento de encargos ou serviços impostos por lei por motivo de convicção
religiosa.
Questão interessante é a do preâmbulo da
Constituição que aludi acima. A CF/88, em seu preâmbulo, utiliza-se da
expressão ”sob a proteção de Deus”. Esta, no entanto, não quer revelar a prevalência
de uma linha monoteísta em detrimento da politeísta em absoluto, a liberdade de
se crer em qualquer “Deus” ou não se crer em nenhum (ateu) não gera qualquer
forma de desigualdade perante o Estado, que respeita todas as crenças como
iguais. O STF quando chamado a pronunciar-se sobre ser o preâmbulo parte de
nossa Constituição passível de controle de constitucionalidade se fez claro
afirmando pela impossibilidade e declarando a “irrelevância jurídica” da parte
preambular constitucional, despida de valor normativo e força cogente... Mais
uma vez fica assentado que o Estado é laico.
A questão dos símbolos religiosos em
prédios públicos como tribunais até hoje denota-se de extrema complexidade e de
inelutável dificuldade para se obter um consenso... Fato é, que ao se tomar ao
pé da letra nossa condição de Estado laico, esses símbolos haveriam de ser
retirados, já que em sua quase totalidade são formas advindas de nossa história
de comunicação simbólica da religião católica que o Estado acaba por manter com
a sociedade. Poder-se-ia, portanto, representar uma preferência católica não
desejada constitucionalmente, uma desigualdade estatal para com as demais
religiões, um desrespeito às liberdades de crer ou de não crer, como no caso do
ateísmo. O CNJ, no entanto, entendeu os objetos como símbolos da cultura
brasileira, que esses não interfeririam na imparcialidade e universalidade do
poder judiciário. A defesa dessa tese só tem cabimento caso olhemos essas
comunicações simbólicas como históricas obras de artes, independentes de sua
intrínseca fé representadas.
De fato, o profundo arcaiquismo ideológico
das religião geram uma série de embaraços ao mundo moderno. Com são esdrúxulas
proibições irrazoáveis e por isso geradoras de conflitos, como do uso de métodos
anticoncepcionais aos católicos, por exemplo, ou da feitura de tratamentos
hemoterápicos para as testemunhas de Jeová, que o Estado se vê na obrigação de
quando acionado solucionar. O exemplo de dogmas como dos métodos contraceptivos
a sociedade em grande parte já expeliu de sua fé pela falta inelutável de
ambiência prática, e acabou se tornando dogma morto por sua própria essência
inaplicável. O caso das testemunhas de Jeová, facção ultra-ortodoxa religiosa,
já se denota de uma complexidade bem maior com o objetivo de respeitá-la... A
justiça vem entendendo que os fiéis maiores e capazes, que livre e
expressamente não aceitem submeterem-se aos tratamentos hemoterápicos, não
poderão ser obrigados, pois possuem o direito de dispor de seus corpos, de suas
vidas, em respeito à liberdade de crença, direito a privacidade e a
autodeterminação. Em se tratando de incapaz, seu representante legal não tem o
poder de impedir o tratamento, e em se tratando de menor, já com poder de
discernimento, é a sua palavra, do menor, que deve prevalecer, e não a de seus
representantes legais, assim têm entendido prevalentemente os tribunais
pátrios. De certa forma, nestes casos, o Estado é chamado para tratar de
questões de cunho religioso pela repercussão que acarretam no mundo dos fatos,
já que entram em conflito com outros direitos fundamentais tutelados pela
Constituição, como o direito a vida.
É neste instante que reinsiro as
palavras na ótica da fé religiosa. As decisões judiciais buscam sempre o que se
mostra mais justo para o direito e não propriamente será o mais justo para o
leigo entendimento das partes e da sociedade. Pela força ainda persuasiva das
palavras religiosas, escritas e faladas, ainda se desenvolvem seres dominados
pela ilogicidade da fé sem parâmetros razoáveis. A cultura via de regra tem o
poder de libertar as pessoas de dogmas e convenções que não se mostrem
consentâneos com suas realidades, mas nem sempre é isso que se vê... Dia
01/12/11, antecipando-me aos votos dos senhores Ministros do STF, discorri exaurientemente
em meu blog pessoal sobre a “antecipação terapêutica dos fetos anencefálicos”
defendendo a tese. Já àquela oportunidade, percebi que os mais discernidos,
independentemente de cristãos (sentido amplo) ou ateus, conseguiam se mostrar
mais flexíveis e abraçavam a tese. Já aqueles que tiveram menor possibilidade
de se desenvolverem intelectualmente durante suas jornadas mostravam-se
indignados e portadores daqueles velhos e consabidos argumentos puristas de
fundo religioso... O STF está aí para confirmar que a toda a regra há
exceções... O Supremo pela maioria de seus membros (8X2) admitiu a época a
possibilidade da antecipação do parto guarnecido por um sem número de
fundamentos que já trazia em meu post de 2011. Porém houve votos dissidentes
como o conservador do aposentado César Peluso. Por esses votos por não poderem
basearem-se em fundamentos de fé, se tornaram de certa forma ontológicos pelo
malabarismo que os senhores ministros tiveram que proporcionar para
defendê-los, já que conforme infirmei anteriormente as palavras religiosas são
um nada para os fundamentos de uma decisão judicial. Um argumento religioso
jamais terá o poder de fundamentar qualquer decisão judicial pela laicidade ter
sido o modelo adotado em
nossa Constituição.
Dito isso, termino o presente post reverenciando o poder das palavras,
que até quando nada podem significar em um âmbito considerado, podem ter o
poder de revolucionar outros âmbitos da sociedade. Não é a toa que a palavra
(escrita, falada, simbolizada) representa a maior manifestação da liberdade de
expressão, da democracia... Até quando ausentes, as palavras podem se fazer
presentes na consciência de cada um, pois a liberdade de pensamento é livre e
irrestrita... Salve o poder das palavras e façamos um bom uso delas, ainda que
em silêncio...
Um comentário:
Recentemente deparei-me com o projeto de lei PL 4710/2012, do deputado Eduardo da Fonte, para tornar obrigatório a impressão da mensagem "Deus seja louvado" nas cédulas do Real. No projeto ele alega que isso é uma tradição da sociedade brasileira. É minha opinião que, tradição por tradição, devíamos revisitar aquela que colocávamos imagens de figuras notáveis da sociedade brasileira, como Santos Dumont, Deodoro da Fonseca, Oswaldo Cruz, etc. A tradição religiosa pode ser algo marcante na nossa sociedade, mas também foi um importante método de dominação dos colonizadores que praticamente destruiu a cultura dos nativos.
Bem, só queria deixar essa minha opinião. Excelente texto, sempre passo por aqui quando tenho um tempinho para ler, muito instrutivo.
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