Em se tratando de partidos
políticos, em especial do partido que preside o país, tal norma regimental
tende a cair no completo desuso (uma heresia jurídica, já que tecnicamente não
há que se falar em norma em desuso), que através de uma espécie de "licença poética" jurídica permito-me a esta impropriedade.
Já se propôs-se, por Tarso Genro,
quando assumiu a presidência do partido em 2005, a refundação do partido como
forma de apagar da memória da sociedade as mazelas tornadas públicas de seus
militantes. A proposta àquela época restou rejeitada. Hoje, percebe-se com
grande acerto.
Vemos um partido que notadamente acredita
e aposta na ignorância da sociedade brasileira para continuar sua caminhada
tendente ao continuísmo de poder. Lula firma com máxima convicção, que a
provável queda do Palmeiras e a disputa do título pelo Corinthians em Tóquio
importam muito mais a sociedade que o julgamento dos mensaleiros de seu
partido. Já o ministro da Secretaria Geral do governo Dilma, Gilberto Carvalho,
propugna em outras palavras acreditar que o povo está preparado para
desconsiderar a decisão da maior Corte de justiça deste país, pois segundo ele
o povo quer quem cumpra as políticas públicas prometidas, independentemente do
meio escolhido para tal fim, “maquiavelismo político”.
De certa forma a sociedade
mostrou que Lula e Gilberto Carvalho estão sim com a razão. Em 1º turno, o PT
alcançou resultados que nem seus militantes mais otimistas seriam
capazes de apostar. A sociedade vem legitimando seu no papel de ignorante no
contexto político-social deste país, e de certa forma, mandando um recado
negativo as instituições de poder, um recado de permissibilidade no tocante a
imoralidade no trato com a coisa pública, de anuência aos políticos que se
desviam do interesse público a ser perseguido, de complacência em relação aos
demagogos que burlam o ordenamento para se locupletarem em proveito de seus
interesses privados. De certa forma, não revelar-se-ia demasiado sustentar que
a sociedade em sua maioria reprova este emblemático capítulo da estória do
Supremo Tribunal Federal, que funcionalmente utiliza das normas postas para
reprimir a impunidade dos crimes de poder.
Pautando por este ângulo de
visagem onde o descumprimento de nosso ordenamento legal e constitucional pelos
membros de poder recebe como resposta a tolerância social, vide eleições, e em
se tratando do partido que desde que ascendeu ao poder sempre solenemente
desrespeitou o ordenamento posto e indiretamente a sociedade, não haveria como
imaginar atitude diversa que não a abstração, o contumaz desrespeito também
quanto as suas próprias normas internas de funcionamento, de menor caráter
cogente, que em tese protegeriam o partido de criminosos infiltrados na legenda.
É nessa toada, que os dirigentes do PT já adiantaram que não cumprirão o
estatuído regimental e que todos os condenados pelo STF no julgamento do
mensalão, filiados ao partido, permanecerão como membros-militantes do PT. Decreta-se:
Criminosos são sim bem-vindos!
Seria, sejamos intelectualmente
justos, paradoxal, imaginar que criminosos punam criminosos irmanados para
prática de crimes. Isso só se mostraria imperioso como resposta institucional
caso o Brasil não fosse o Brasil com as suas características, se tivéssemos uma
sociedade intelectualmente mais bem desenvolvida que a atual construída, bem
distante do patológico analfabetismo funcional, a regra que nos permeia. Uma
sociedade capaz de discernir no mínimo a um julgamento moral de quem a
democracia nos oportunizou escolher para nos representar. Este país, que a cada
passagem de sua estória deixa para trás o posto de promessa e escala o posto da
utopia de um país de tolos...
Para concluir, quero
veementemente repudiar a má-fé intelectual de quem vem sustentando estar se
revelando o julgamento do mensalão um julgamento político e não jurídico. Em
nenhum momento se está condenando por razões que não as jurídicas. Os votos
condenatórios vêm sendo ostensivamente fundamentados e exaustivos a partir dos
elementos carreados pelo MPF à denúncia e das máximas da experiência. Alegar
que o STF não vem se portando como um Tribunal garantista é uma falácia ou de
má-fé ou de ingenuidade intelectual. O garantismo não pode ser visto como uma
garantia dura e não adaptável. Certos crimes se julgados a partir de uma
rigidez garantista extrema fatalmente restarão sem uma resposta jurisdicional
minimamente justa e eficiente, onde a impunidade revelará a medida da frustração do ius puniendi estatal. Os crimes de poder
são exemplos em que se o tribunal optar por um garantismo duro e inflexível não
se verá alcançada uma resposta jurisdicional de acordo com as realidades fáticas
apresentadas. São crimes onde se procura esconder seus mentores, de forma que, acaso descoberto o esquema, o Estado não logre êxito em sua persecução criminal alcançando tão só os meros e substituíveis executores não ocultos do esquema, os peixes mais
miúdos do cardume.
É nesta perspectiva garantista de
impunidade que trabalhou o Partido dos trabalhadores, e contra esta limitação
imposta por esta espécie de crime organizado que deve o Estado-juiz procurar
comprovar os fatos a partir deste jogo de esconde-esconde. Imaginar, segundo
uma exigência garantista rígida, encontrar provas documentais, assinaturas
autorizativas de ilícitos dos mentores/dirigentes do esquema, é criar aos julgadores
embaraços intransponíveis para seus ofícios de julgar nos termos de uma verdade
possível, transformando-os em figuras impotentes e facilmente manipuláveis em
seus poderes jurisdicionais. É impedi-los de utilizar suas persuasões
racionais, seus espíritos cognitivos subsumidos ao caso concreto. Condenar a
partir de provas testemunhais, fortes indícios e presunções, a partir de todos os nexos causais constantes
nos autos processuais, não é abdicar do modelo garantista de julgar, mas sim utilizá-lo da forma adequada, segundo as exigências do caso concreto. Lembro que a tarifação das
provas não faz mais parte do nosso direito positivado, e que a prova
testemunhal não tem menor valor que a documental, não havendo sentido em ainda considera-la
como a prostituta das provas. Os valores restarão atribuídos quando da análise
do caso concreto, a partir da íntima percepção dos julgadores e de suas
fundamentações colacionadas as suas razões de decidir. Note-se ainda, que o Supremo valora provas testemunhais de corréus como provas testemunhais válidas e de igual força probande. O caso concreto revelará sua fidedignidade.
Deve-se procurar dinamizar a
prestação jurisdicional não impossibilitando o dever de o Estado de prestar
justiça, fazendo-o refém de manobras impeditivas do crime com o fito de ocultar ao
máximo a autoria e a materialidade pertinente aos mandantes de tais práticas, os reais beneficiários dos delitos que possuam características de crimes praticados por organização criminosa. Pensar diferente disso, é pensar em um judiciário ineficiente, que não acompanha as evoluções que os criminosos impelem às suas práticas, é analogicamente tornar o juiz um mero aplicador de reprimendas ao pedreiro executor da obra que
desabou, sem jamais conseguir punir o arquiteto que a desenhou ou o engenheiro
que coordenou sua construção. É concordarmos com uma prestação jurisdicional ineficaz na luta contra a impunidade dos crimes de poder, um Estado incapaz de punir parcela dos transgressores de sua
ordem em uma espécie de "impunidade censitária" de poder. Se esta é notadamente uma realidade isto não quer significar que deva ser aceita com parcimônia.
Sem mais.
Um comentário:
Grande artigo, caro Sarmento. Excelente visão quanto a uma nova leitura do garantismo penal.
Parabéns novamente!
Prof. Saraiva
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