02 outubro, 2012

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA. O MENSALÃO COMO UM EMBLEMÁTICO EXEMPLO

Tem-se utilizado muito e em tom de crítica, como algo que se deseja combater, as expressões “judicialização da política” e “politização da justiça”, mas devo decretar, que em grande parte, sem qualquer rigor interpretativo-cognitivo minimamente apurado ou a partir de uma análise tendenciosa de interesse. Passam pela repetição a representar aos olhos dos leigos sinonímias de uma indevida interferência de uma das funções de poder no âmbito de atuação da outra, mas em grande parte a partir de em uma análise simplista e equivocada.
Devo confessar mostrar-me recalcitrante quando percebo o fenômeno da “politização da justiça” e de certa forma eufórico quando percebo a “judicialização da política”, o que oportunamente motivarei. Deixo claro, que entendo como “politização da justiça” a intromissão da política nas razões de justiça, ao passo que entendo como “judicialização da política” a intromissão das razões de justiça no âmbito da política, no que se alcunha também como “ativismo judicial”.
Em regra, há um campo quase que insindicável que protege a atuação das funções políticas de poder. Refiro-me as funções executiva e legislativa, que possuem como quase que intocáveis o campo de suas discricionariedades pautadas na conveniência e oportunidade das políticas públicas que ideologicamente ou não irão adotar. Neste campo, a função jurisdicional deve ao máximo omitir-se em respeito ao princípio da independência dos poderes, mas deve se fazer presente sempre que se perceba uma ilegalidade, uma política pública irrazoável que afete as prioridades constitucionais de interesse público, com maior razão se esse interesse público restar tratado por nosso Diploma Maior como um direito fundamental, seja individual, coletivo ou difuso da sociedade. Desde agora já se aperceberá que o “ativismo judicial” pode revelar-se impreterível medida contra o abuso das funções políticas, em respeito a interdependência das funções da república.
Quando uma decisão judicial impede que o administrador construa um museu em um terreno desapropriado em um município com poucos recursos e sem qualquer hospital público nas redondezas, pratica o “ativismo judicial”, adentra-se ao âmbito da discricionariedade política do gestor municipal fazendo preponderar um “querer” jurisdicional ao afastar um “querer” administrativo. Esta atuação jurisdicional pauta-se notadamente segundo o princípio orientador da razoabilidade e deve atender diretamente aos anseios constitucionais de respeito aos direitos fundamentais no caso concreto. Não há qualquer dúvida, que proporcionalmente seria muito mais fundamental a construção de um hospital que um museu em um município que desampara os direitos fundamentais mais basilares da sociedade, como é o direito a uma prestação estatal digna no setor de saúde. Por isso, denomino essa intromissão judicial, neste caso concreto, como uma intromissão positiva e desejada, segundo os prioritários anseios de interesse público, quebrando o estereótipo de ser perniciosa qualquer intromissão para o bom funcionamento do sistema.
Em regra, e principalmente em se considerando nossas realidades, o “ativismo judicial” se faz presente quando há razões de controle de legalidade, com repercussões nas searas da moralidade e da razoabilidade das políticas públicas escolhidas pelos administradores e pelos legiferantes. Por isso, estes tipos de atuação devem sim ser bem vistas se executadas sem abusos, tomadas nossas realidades de uma política apodrecida. As funções de poder são interdependentes e devem ao máximo atuar em conjunto. A fiscalização de um poder sobre o outro é salutar ao desenvolvimento de uma democracia sadia e efetiva. O poder, que é uno e indivisível, só se faz eficientemente funcional quando suas três funções funcionam cooperativa e harmonicamente em um mútuo policiamento segundo o interesse público. Caso contrário, os abusos tornam-se as tônicas e os poderes institucionais passam a agir não mais segundo os interesses públicos, mas segundo os indesejáveis interesses privatistas. Este mútuo controle entre as funções de Estado nada mais é do que a adoção da aplicação da concepção dos “Checks and Balances”, importada do direito norte-americano na linha de um Estado de Direito (rule of law).
Passada esta fase expositiva prévia, faz-se possível adentrar-se a temática do momento, que é o mensalão. O mensalão é magistralmente uma temática riquíssima onde se permite observar e discutir o que até aqui se propôs a tratar. Denota-se notório, que razões políticas interferem de forma veemente nos votos de alguns dos senhores ministros, quando as razões jurídicas deixam de prevalecer. O tráfico de influências da política pode aniquilar de morte as razões de justiça, e aqui se observa nitidamente um viés da “politização da justiça”, que em regra revela-se deletéria e malversada, repleta de vícios distantes de algo que se aproxime de um ideal de uma prestação jurisdicional justa, aqui se vislumbra o que denomino de “intromissão política negativa” na função jurisdicional de poder. Neste “ativismo político” indesejado percebe-se com alguma clarividência a desnaturação da função jurisdicional, pois abdica da busca da verdade possível do processo para se decidir segundo as razões motivadas por interesses privados. Abstrai-se dos princípios da moralidade pública e da impessoalidade, do princípio republicano e do princípio democrático, afastando-se da legitimidade que o interesse público deveria conferir a cada atuação.
Vale lembrar as lições de Hegel, que em uma leitura mais contemporânea que as feitas por Kant e Kelsen, não separa o direito da moral. O valor da eticidade deve estar a fundamentar qualquer prestação jurisdicional, sem a qual a prestação jurisdicional mostrar-se-á de valor viciado. É exatamente nesta esteira que o direito (ético) na função jurisdicional é chamado como fator de controle das demais funções de Estado, não se podendo cogitar de um direito desafetado da moral para solução de qualquer conflito.
O Supremo, por razões de índole constitucional, apresenta-se um tribunal notadamente político já a partir da formação de seu Pleno. O presidente da República possui a atribuição da indicação dos ministros, que restarão protocolarmente sabatinados no Senado federal. A Lei Maior prevê entre os requisitos para a indicação ostentar o indicado de notório saber jurídico, como forma de se empreender a qualidade da meritocracia a escolha. Lamentavelmente este requisito se faz facilmente sonegado por vontade do chefe do executivo federal, que lhe é facultado escolher por razões de comprometimento ideológico, já que o Senado faz o paupérrimo papel de “foca” do chefe do executivo neste processo. São as razões políticas se fazendo prevalecer sobre as razões de justiça. A eticidade mais rígida da função jurisdicional não pode ceder a maior elasticidade moral das funções políticas de Estado.
Coloca-se na berlinda desta forma o método constitucional de escolha dos senhores ministros, que procurando atingir a política dos “freios e contrapesos” acaba por fortalecer demasiadamente a função Executiva em detrimento das demais funções estatais, causando um desequilíbrio capaz de comprometer a própria política dos “checks and balances”.
Ao falar em legitimidade fez-me lembrar o que faço firmar, que ambas as funções de poder quando legitimamente exercidas contam com legitimidade. Ser eleito a um mandato pelo povo não confere maior legitimidade que o empossado por concurso público. Não me venha argumentar como alguns desavisados que as funções legiferantes e administrativa gozariam de maior grau de legitimidade que a jurisdicional. Ousaria dizer o contrário, que a jurisdicional teria uma maior legitimidade, já que calcada, em regra, na meritocracia, sem que o poder econômico e/ou de uma máquina estatal venha a interferir nos resultados finais de provimento. Em verdade, melhor os que sustentam ambos possuírem a mesma legitimidade.
Importante ressaltar o aspecto legitimidade, pois a “judicialização da política” não lhe retira esta característica. Por isso, quando a justiça dá a última palavra e impede um ato administrativo irrazoável ou promove uma reprimenda a um legislador ou administrador que se descurou de sua probidade desejada, mesmo havendo sido escolhido pelo povo estará o judiciário atuando nos limites da constituição, e em regra, no interesse público e portanto de forma legítima.
A judicialização da política vem permitindo a função jurisdicional interferir nas razões da decidir das outras duas funções, conforme demonstrado. Não houvesse esta legítima e salutar interferência, hoje o processo do mensalão estaria engavetado como tantos que lograram este parcial fim. O processo do mensalão demarcará se a intromissão jurisdicional nas ilegalidades das demais funções conseguirá ou não se sobrepujar a intromissão da política nas razões jurisdicionais do maior tribunal deste país. Marcar-se-á uma era onde daremos um grande passo no íngreme caminho da consolidação de um Estado Democrático de Direito ou um grande passo em direção ao precipício de um Estado menos de Direito e mais político ao melhor estilo do planejado por Maquiavel.
Sem mais.

4 comentários:

Ronaldo Torres disse...

Mais uma obra-prima de artigo. Parabéns Sarmento!
Nada a acrescer, apenas aplausos!

Katia Maranhão disse...

Querido Sarmento,

Seus artigos são sensacionais, você é sensacional.

Muito obrigada por nos oportunizar!!!

Ajuricaba disse...

Como sempre lúcido e esclarecedor. Dá dó de ver a Corte Suprema ser povoada por apaningudos e não por grandes juristas.

Tererza Thompson disse...

Excelente reflexao Sarmento. Otimo artigo. Assino embaixo sem pestanejar.